Ideias (bem) gerais
O conceito de norma é uma contribuição do
linguista romeno Eugenio Coseriu, que propôs um acréscimo à
dicotomia saussuriana. Sua tricotomia vai do mais concreto (fala,
uso individual da norma) ao mais abstrato (língua, sistema
funcional), passando por um grau intermediário: a norma (uso
coletivo da língua). Em outras palavras, há realizações consagradas
pelo uso e que, portanto, são normais em determinadas circunstâncias
linguísticas, previstas pelo sistema funcional. É à norma que nos
prendemos de forma imediata, conforme o grupo social de que fazemos
parte e a região onde vivemos. A norma seria assim um primeiro grau
de abstração da fala. Considerando-se a língua (o sistema) um
conjunto de possibilidades abstratas, a norma seria então um
conjunto de realizações concretas e de caráter coletivo da língua.
A norma são
modelos abstratos não manifestações concretas e representam
obrigações impostas numa dada comunidade sócio-linguístico-cultural.
Inclui elementos não relevantes, mas normais na fala dessa
comunidade. Dessa forma, se constitui como realização coletiva,
tradição, repetição de modelos anteriores, estabelecendo códigos e
subcódigos para diferentes grupos de uma mesma sociedade. A pesar de
a norma ser convencional e opcional, torna-se uma opção dentro de um
grupo a que pertence o falante. Preserva seus aspectos comuns e
elimina tudo o que, na fala, é inédito, individual.
Nos processos de ensino/aprendizagem
de língua materna, é mister propiciar ao aluno o conhecimento das
diversas normas coexistentes na sua comunidade sócio-linguístico-cultural.
Pode-se distinguir, inclusive, em espaço geográfico ( dialetos,
falares, etc...); classes sociais; faixa etária; grupos sociais (
jargões, gírias.etc...); discurso ( os universos do discurso, tais
como o jurídico, o pedagógico, etc...); sexo; modalidade (
oral/escrito); registro ( formal/informal), etc.
Dessa forma, a imposição da
chamada norma culta em detrimento de outras normas,
configura a perda da identidade de um determinado segmento social.
Com isso, não se consegue uma compreensão mais completa dos fatos
lingüísticos permitidos pelo sistema linguístico. Ao mesmo tempo,
deixar de ministrá-la impede-se o acesso do aluno a um estrato
social considerado superior e impede, também, seu acesso à tradição
cultural escrita. Num caso e no outro, há prejuízo no
desenvolvimento da competência comunicativa. Portanto, é imperativo
que o aluno compreenda o maior número possível de normas a fim de
alcançar sua plena integração na comunidade sócio-lingüístico-cultural
em que está inserido.
Vejamos alguns exemplos da oposição norma / sistema no português do
Brasil.
O conhecido [š], chiante pós-vocálica,
variante de [s], é norma no Rio de Janeiro em todas as classes
sociais: gás [gaš], mês [meš], basta [bašta].
Já no Sul, a pronúncia sancionada pelo uso (ou norma) é marcadamente
alveolar: [basta], [mês], [gás].
No campo da Morfologia, o sistema dispõe
dos sufixos -ada e -edo, ambos com o sentido de
coleção. Enquanto, para designar grande quantidade de bichos, a
norma culta prefere o primeiro (bicharada), a norma geral no
falar gaúcho consagrou o segundo: bicharedo. O mesmo acontece
com os sufixos diminutivos -inho e -ito, ambos
disponíveis no sistema funcional: a norma fora do Rio Grande do Sul
é dizer-se salaminho; já em terras gaúchas o uso
sancionou salamito.
No plano sintático, a língua
(sistema) portuguesa dispõe dos advérbios já e mais,
que, quando usados numa frase negativa, indicam a cessação de um
fato ou de uma ação. A norma brasileira preferiu o segundo: “Eu não
vou mais”; “Não chove mais”. A portuguesa optou pelo
primeiro: “Eu já não vou”; “Já não chove”. O português
do Brasil prefere descrever um fato em progressão dizendo: “Estou
estudando” (aux. + gerúndio); já em Portugal, a norma é usar-se
aux. + infinitivo: “Estou a estudar”. Ainda com relação à
norma brasileira, não podemos deixar de mencionar o uso consagrado
do verbo ter no lugar de haver, com o sentido de
“existir”, uso inclusive já referendado por vários autores
brasileiros de peso, como Carlos Drummond de Andrade (“No meio do
caminho tinha uma pedra”) e Manuel Bandeira (“Em Pasárgada
tem tudo”), dentre outros.
Nesse sentido, cabe ressaltar que certos
deslocamentos da norma, constantes e repetidos, podem, com o tempo,
fazer evoluir (mudar) a língua. É o que vem ocorrendo, por exemplo,
com a pronúncia do adjetivo “ruim”. A norma gramatical em vigor
recomenda pronunciá-lo como hiato: ruím. Entretanto, o que
vemos é a silabada, no português do Brasil , quando esse é
pronunciado como ditongo: rúim. É possível que, no futuro,
seja esta a única pronúncia em vigor, tanto no sistema (língua)
quanto na norma (uso).
Tipos de Norma
As variantes coletivas (ou subcódigos)
dentro de um mesmo domínio linguístico dividem-se em dois tipos
principais: diatópicas (variantes ou normas regionais ) e
diastráticas (variantes culturais ou registros).
As variantes diatópicas caracterizam as
diversas normas regionais existentes dentro de um mesmo país e até
dentro de um mesmo estado, como o falar gaúcho, o falar mineiro,
etc. Por exemplo, “cair um tombo”, no Rio Grande do Sul; “levar um
tombo”, no Rio de Janeiro.
As variantes diastráticas, intimamente
ligadas à estratificação social, evidenciam a variedade de
diferenças culturais dentro de uma comunidade e podem subdividir-se
em norma culta padrão (ou nacional), norma coloquial (tensa ou
distensa) e norma popular (também chamada de vulgar).
A norma culta é a modalidade escrita
empregada na escola, nos textos oficiais,
científicos e literários. Baseada na tradição
gramatical, é a variante de maior prestígio
sociocultural. Ex.: Há muito tempo não o
vejo. Vendem-se carros. Havia dez
alunos em sala.
A norma coloquial é aquela empregada
oralmente pelas classes médias escolarizadas. Viva e
espontânea, seu grau de desvio em relação à norma
culta pode variar conforme as circunstâncias de uso.
Ex.: Tem muito tempo que não lhe vejo
/ não vejo ele. Vende-se carros.
Tinha dez alunos em sala.
A norma popular caracteriza a fala das
classes populares semiescolarizadas ou não-escolarizadas.
Nessa modalidade, o desvio em relação à norma
gramatical é maior, caracterizando o chamado “erro”.
Ex.: A gente fomos na praia. Dois
cachorro-quente custa três real.
Há também as variantes diafásicas, que
dizem respeito aos diversos tipos de modalidade expressiva
(familiar, estilística, de faixa etária, etc.).
Dessa forma, Coseriu define o
sistema como conjunto de liberdades e de possibilidades que se abrem
para um falar compreensível numa comunidade, colocando como
secundário o caráter de imposição: (...) mais que impor-se ao
indivíduo, o sistema se lhe oferece (...). (p. 74) A
norma, por sua vez, como conjunto de realizações obrigatórias,
consagradas e compartilhadas dentro dessa mesma comunidade de
falantes, assumiria um papel de tirano, de restrição:
O sistema é sistema de possibilidades,
de coordenadas que indicam os caminhos abertos e os caminhos
fechados de um falar compreensível numa comunidade; a norma, em
troca, é um sistema de realizações obrigatórias, consagradas social
e culturalmente: não corresponde ao que se pode dizer, mas ao que já
se disse e tradicionalmente se diz na comunidade considerada”. O
sistema abrange as formas ideais de realização duma língua (...) a
norma, em troca, corresponde à fixação da língua em moldes
tradicionais; e neste sentido, precisamente, a norma representa a
todo momento o equilíbrio sincrônico (externo e interno) do sistema.
(pág. 50)
Bibliografia:
COSERIU, E. Sincronia,
diacronia e história. Rio de Janeiro/São Paulo: Presença/EDUSP,
1979.
___________.
Teoria da Linguagem e Linguística Geral.
Rio de Janeiro/ São Paulo: Presença/ EDUSP, 1979.
CARVALHO, Castelar in
www.filologia.org.br/viisenefil/09.htm