Prof. Dr.  Jack Brandão
 
 
Literatura

         
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PADRE JOSÉ DE ANCHIETA

 


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Na festa de São Lourenço

 

LOCAL:

Aldeia de S. Lourenço, hoje parte de Niterói.

DATA:

10 de agosto de 1587.

CENÁRIOS:

Porto da aldeia e adro da capela de S. Lourenço.

PERSONAGENS:

Guaixará,chefe dos diabos(Gua.)

Aimbirê, Saravaia: seus criados (Aim., Sar.)

Tataurana, Urubu, Jaguaraçu, Caborê: companheiros destes. (Tat.. Ur., Jag., Cab.)

Velha, que hospeda Guaixará (Vel.)

Décio, imperador romano (Déc.)

Valeriano, seu colega (Val.)

S. Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro (Seb.)

S. Lourenço, padroeiro da aldeia (Lour.)

Anjo da Guarda da aldeia, com asas de canindé (Anj.)

Cativos, que acompanham os diabos.

TEMA:

 “Após a cena do martírio de S. Lourenço, Guaixará chama Aimbirê e Saravaia para o ajudarem a perverter a aldeia. S. Lourenço a defende, S. Sebastião os prende.

Um anjo manda-lhes afogar Décio e Valeriano; os quatro companheiros acorrem para auxiliar os demônios. Os imperadores recordam façanhas quando Aimbirê se aproxima. O calor que se desprende dele abrasa os imperadores, que suplicam a morte.

O anjo, o Amor e o Temor de Deus aconselham caridade, contrição e confiança em S. Lourenço. Faz-se o enterro do Santo. Meninos índios cantam, tocam e dançam.”

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ATO I:  Esta se cantou, estando S. Lourenço nas grelhas

 

Por Jesus, meu salvador,

morto por minha maldade,

asso-me sobre esta grade,

com fogo do seu amor.

 

Bom Jesus, quando te vejo,

em a cruz, por mim chagado,

eu, por ti, vivo queimado,

mil vezes morrer desejo.

 

Pois teu sangue redentor

lavou-me toda maldade,

que eu arda sobre esta grade,

com fogo do teu amor!

 

O fogo do forte amor,

ó meu Deus, com que me amas,

mais me queimas do que as chamas

e brasas com seu calor.

 

 

Ato II: No 2º ato entram três diabos, que querem destruir a aldeia com pecados, aos quais resistem S. Lourenço e S. Sebastião e o Anjo da Guarda, livrando a aldeia e prendendo os diabos, cujos nomes são: Guaixará, que é o rei; Aimbirê e Saraiava, seus criados.

 

Gua.:

Molesta-me a boa gente,

fazendo-me crua guerra;

o povo está diferente:

quem o mudou de repente,

para danar minha terra?

 

Só eu sou

o que nesta aldeia

como seu guarda vivendo.

Às minhas leis eu a rendo

e daqui longe me vou

outras aldeias revendo.

 

Como eu, no mundo, quem há?

eu sou bem conceituado,

eu sou o diabão assado

que se chama Guaixará,

em toda a terra afamado!

 

Agradável é meu modo:

não quero ao índio vencido,

não o quero destruído.

Remexer o povo todo

é somente o que eu envido.

 

É boa coisa beber,

até vomitar, cauim.

É isto o maior prazer,

isto só, vamos dizer

isto é glória, isto sim.

 

Pois só se deve estimar

moçacara beberrão.

Os capazes de esgotar

o cauim, guerreiros são,

 sem se cansar

sempre anseiam por lutar.

 

É bom dançar, enfeitar-se

e tingir-se de vermelho;

de negro as pernas pintar-se,

fumar e todo emplumar-se,

e ser curandeiro velho.

 

Enraivar, andar matando

e comendo prisioneiros,

e viver se amancebando

e adultérios espiando,

não o deixem meus terreiros.

 

Para tal,

vivo ao lado do pessoal,

fazendo-me acreditar.

Os tais padres afinal

vêm agora me expulsar,

pregando a lei divinal.

 

Tenho fé

em meu ajudante, que é

meu mór colaborador,

queimado no mesmo ardor

o grande chefe Aimbirê,

dos índios pervertedor.

 

Senta-se numa cadeira e vem uma velha chorá-lo, e ele ajuda-a, como fazem os índios, e ela, depois de o chorar, achando-se enganada, diz:

 

Vel.:

Ó diabo intrometido!

enjoa-me seu chulé!

se vivesse meu marido,

meu pobre Piracaê,

lhe diria isso ao ouvido.

 

            Fala com ele:

 

Irra, o mau!... Não beberá

hoje do que eu mastiguei;

tudo só eu beberei!

Quanto juntei, dias há,

irei bebê-lo, oh! Irei.

 

            E foge.

 

Chama Guaixará a Aimbirê e diz:

 

Gua.:

Mas onde está ele agora?

 

            (aparece Aim.)

 

Aqui! Estavas dormindo?

Aim.:

Não! longe andava, lá fora:

pelas tabas fiz demora,

à nossa serra subindo.

 

Alegraram-se ao me ver,

me abraçaram e hospedaram

e o dia inteiro passaram

a dançar, folgar, beber,

e as leis de Deus ultrajaram.

 

Em suma fiquei contente;

e, ao ver a depravação,

tranquilizei-me: eles dão

aos vícios de toda a gente

abrigo no coração.

 

Gua.:

 É por isso

que em teu grande feitiço

apoio minha esperança.

Vem cá! Os nomes avança

dos que enlaçaste no enguiço

e meteste nesta dança.

 

Aos ilhéus, bons caiçaras,

aos fiéis Maratauãos

meus sermões não foram vãos.

Todos os Paraibiquaras

puseram-se em minhas mãos.

 

Perdi alguns, é verdade,

que a Mangueá foram ter

com os padres da cidade.

Não gosto quando se evade

um tupi do meu poder.

 

Mas após,

para os que ficaram sós

esses Padres lhes mentiram.

Nada porém conseguiram:

fiz esquecer sua voz

e a minha todos ouviram.

 

Gua.:

E que meios aparelhas

que lá os tem enleiado?

Aim.:

 Trouxe, aos Tapuias, de velhas

de Mangueá umas parelhas...

E assim fiquei descansado.

 

As velhas são más de fato:

fazendo suas magias

exaltam as fantasias,

lançam a Deus desacato,

e a mim enchem de honrarias.

 

Os Tapuias, por folgar,

não vieram à nossa feira.

Passaram a noite inteira

em feitiços e a dançar,

antes de ir para a fogueira.

 

Gua.:

 Bem! Já basta!

Com sucessos desta casta,

tu me encheste de alegria.

Aim.:

Pois será de grã valia

a quem, como eu, arrasta

seus parentes à enxovia.

 

Vês tu os Tupinambás,

esses do Paraguaçú,

que com Deus não tinham paz?

Perdi-os todos, nem tu

rastro algum deles verás.

 

Infesto Moçupiroca,

Jequeí, Guatapitiba,

Niterói, o Paraíba,

Guajajó, Carijó-oca,

Pacucaia, Araçatiba.

 

Todos os Tamoios foram

jazer queimando no inferno.

Só alguns na aldeia moram

e agora firmes se escoram

no amor do seu Deus eterno.

 

Estes Temininós bravos

detestam as nossas leis.

Gua.:

Vem pois torná-los escravos:

que bebam, façam agravos,

blasfemem, como infiéis.

 

Vivam provocando brigas

e cometam mil pecados.

De seu Senhor afastados,

Vem, e nas nossas intrigas,

oh! Envolve estes malvados.

 

Aim.:

 É bem difícil a alguém

Tentá-los: o seu guardião

Amedronta-me...

Gua.:

 Pois quem?

Aim.:

São Lourenço, herói do bem,

Que vive na alta mansão.

 

Gua.:

Qual? O Lourenço queimado,

que em fogo, como nós, arde?

Aim.:

 Esse!

Gua.:

Oh! Fica descansado!

será logo afugentado...

Não sou um Mair covarde!

 

Pois fui eu quem o queimou

e o assou ainda em vida.

Aim.:

Ele agora te revida:

de teus braços libertou

quantos teu amor convida.

 

Na luta foi seu amigo

Bastião, outrora flechado.

Gua.:

O que eu flechei? Oh! Comigo

me alegro, e remoçado

volte meu valor antigo!

 

Ambos logo fugirão,

logo ao me verem vir.

Aim.:

Não creio! Vencer-te-ão.

Gua.:

Confia em mim! Eles hão

de, com o medo, fugir.

 

Quem há no mundo como eu?

que ao próprio Deus desafia?

Aim.:

Por isso Deus te abateu

e no inferno te meteu

que te abrasa noite e dia.

 

Aim.:

Pois eu assisti outrora

à luta de Guaixará.

Quanta igara veio cá!

Ajudaste-os na má hora,

debandou tudo pra lá!

 

Pouco era o povo cristão;

mas nos barcos ateou

fogo São Sebastião,

e assustou-os desde então

ninguém na luta ficou.

 

Gua.:

De certo os cristãos de bem

tão rebeldes não seriam...

Os Temiminós porém

a lei de Deus não retém,

não amam, nem apreciam.

 

Vai e faze o pecador em

em nossos laços tombar.

Caia logo seu vigor

e deixando ao Criador

venha a nós confiar.

 

Aim.:

Vou tentar. Tempo virá

em que me obedecerão!

Gua.:

Vou à frente, espera cá!

enquanto eu luto por lá,

os índios te vêm à mão.

 

Aim.:

Não te afobes! ao chão rente

Deitemo-nos nestas tocas.

Nosso espia vá à frente

e primeiro bem atente

a todo interior das ocas!

 

            (entra Saraiava)

 

Gua.:

Muito bem!

És capaz do que convém,

Saraiava, mau vigia?

Sar.:

É essa minha valia.

Olá! irá muito além

O Saraiava-alegria!

 

Sou o Saraiavaçu!

Que novidades ouvi?

Gua.:

Espero muito de ti:

que espie as ocas tu

e logo voltes aqui.

 

Eu hoje te vou deixar

aprisionar tais borregos.

Sar.:

 Onde a ordem me mandar

irei; pois, em meu pensar,

sempre quis esses empregos.

 

Pois eu, Saraiava, à toa,

estes índios vou prender;

sua aliança vou romper...

Ir-me-ei nesta canoa.

Cauinar é meu prazer!

 

Gua.:

Eh! voa, corta pelo ar,

súbito!

Sar.:

 Já voarei!

 

            fica passeando com Aim. e diz:

 

Guai.:

Contigo um giro darei.

Quando Saraiava voltar,

contigo os chãos destruirei.

 

            Torna Saravaia e diz:

 

Aim.:

Danado... Voltou voando!

Gua.:

Não se demorou na raia...

Já chegaste, Saravaia?

Sar.:

Sim, honra-nos todo o bando,

está em festa toda arraia!

 

Goza, oh sim!

regorgitava o cauim:

igaçabas de grão porte

convidavam de tal sorte

que se esgotavam sem fim.

Gua.:

Estava forte?

Sar.:

Bem forte!

 

Para tal festa acorriam

os rapazes beberrões

que empestam os aldeões:

velhos, velhas, moças iam

servindo mais, mais porções.

 

Gua.:

Bem, basta! agora com jeito

vamos assaltar o bando:

eu o fogo à terra deito...

 

            Vêem São Lourenço com dois

 

Aim.:

Olha lá esse sujeito

que me está ameaçando!

 

Ai! O Lourenço queimado?

Sar.:

Sim, ele! E Bastião também.

Aim.:

E esse outro que está ao lado?

Sar.:

Será o Anjo encarregado

que esta aldeia em guarda tem?

 

Ai! eles me esmagarão!

É-me terrível mirá-los...

Gua.:

Sê forte, não fujas, não!

Vem, ataquemos então

para assim amedrontá-los.

 

Das mãs flechas escapar!

pois nos prostram destruídos.

Aim.:

Olha, vem-nos açoitar:

meus músculos vão ficar

de tremor endurecidos.

 

São Lourenço fala a Guaixará:

 

Lou.:

Quem és tu?

Gua.:

Guaixará, o cauçu,

sou o grande boicininga,

o jaguar da caatinga,

eu sou o andirá-guaçi,

canibal, demo que vinga.

 

E ele, é?

Aim.:

O grão tamoio Aimbirê,

sou jibóia, sou socó,

sucuriu taguató,

demônio-luz, mas sem fé,

tamanduá atirabebó!

 

Lou.:

Aqui, na minha mansão.

que buscais por essa via?

Gua.:

Amamos a indiaria!

queremos-lhe a sujeição,

e toda nossa porfia.

 

Ama-se sinceramente

o que é próprio da verdade...

Seb.:

Quem nalgum ponto ou idade

vos entregou essa gente

para vossa propriedade?

 

Deus Senhor,

com santidade e amor,

alma e corpo lhes formou.

Gua.:

Deus? talvez... mas deformou

seu viver de mau teor

sua alma que não se ornou

 

Uns sandeus!

repelem o amor de Deus

e se orgulham pela taba.

Aim.:

Regorgita a igaçaba:

as velhas tentam os seus

com cauim que não acaba.

 

A grande cabaça tolhe

a liberdade da mente;

em meio da dança quente,

nosso carinho os recolhe,

desprezando o Onipotente.

 

Lou.:

Será sua força pouca

para rezar cada dia,

ou perde-os soberba louca?

Aim.:

 Isso! só está na boca

seu amor em que Deus confia.

 

É sim: pois intimamente

só lhe sabem resmungar

e a seu Deus desafiar:

“Terá Deus vista potente

para sempre me espiar?”

 

            São Sebastião com Saraiava

 

Seb.:

Há aqui alguma rata,

ou repugnante gambá?

És noite talvez ingrata

que as galinhas desbarata

e ao índio empobrecerá?

 

Sar.:

 (De almas eu tenho tal fome

que esta noite não dormi...)

Gua.:

Saravai, cala-te aí!

Sar.:

Oh! Não lhe digas meu nome,

não me mate agora aqui!

 

Esconde-me dele agora,

e teu espia serei.

Gua.:

Calma! não te mostrarei;

cala-te e não saias fora,

logo mais te largarei.

 

Sar.:

Eu vou-me esconder ali:

inda bem que não me viu...

Seb.:

Eu vou flechar é a ti!

Arreda! vai-te daqui!

Gua.:

Deixa-o, pois não dormiu.

 

Seb.:

Ele não dormiu de fato,

para os índios perturbar.

Sar.: (É isso mesmo! É exato...)

 

            Açoita-o Guaixará e diz:

 

Gua.:

Se não te escondes te bato...

ou queres ser seu manjar?

 

Sar.:

Ai de mim!

porque me bates assim?

pois estou bem escondido.

 

            Aimbirê com São Sebastião:

 

Aim.:

Já! Sai-te daqui corrido!

Tenho pressa, porque enfim

sou dos fiéis requerido.

 

Seb.:

Fiéis, quem?

Aim.:

Velhos e velhas também,

homens, moças, rapazes,

todos enfim os capazes,

aos quais meu poder retém,

com os quais eu faço pazes.

 

Cantarei a corrupção:

acreditarás em mim.

Seb.:

Inútil! mas ouço enfim...

Aim.:

Igaçabas sempre estão

a transbordar de cauim.

 

De tão ébria a turba acaba

se ferindo e engalfinhando:

Seb.:

Mas logo os vem censurando

o velho morubixaba,

que lhes fala incriminando.

 

Aim.:

Repreensão a tapejaras?...

O próprio dono da festa

chama os homens da floresta:

“Morubixás, moçacaras,

venham a mim!” ele o atesta.

 

Portanto os rapazes todos,

do próprio chefe ao convite,

dão folgas ao apetite

e agridem moças sem modos

Eis que aí tudo se admite.

 

Seb.:

Por isso já usa o bando

buscar os Acarajás,

que se vão aprisionando.

Aim.:

Estes gostam do desmando,

é vida que lhes apraz.

 

Seb.:

Uns aos outros certamente

provocam algumas vezes.

Aim.:

Não sei, mas freqüentemente

eu introduzo meus fregueses

a tudo que é indecente.

 

Gua.:

Espera! Eu vou te socorrer...

Essas velhas se injuriam

e se odeiam com prazer.

Não cessam de maldizer;

E ao maldizer maliciam

 

Pecam as desavergonhadas,

e tecendo mil intrigas,

com drogas do mato e figas,

cuidando de ser amadas,

fazem-se belas e amigas.

 

Esses rapazes são donos

em perseguir as mulheres:

buscam as de vis misteres

em as casas dos colonos

e fogem sem perceberes.

 

Oh! não teria fim isso

até ao sol no poente.

Pecadora é toda a gente.

Aim.:

Se não lhes faltasse o siso,

nos maldiriam de frente.

 

Lou.:

Mas existe a confissão,

remédio senhor da cura.

Os índios que enfermos são

com ela se curarão,

e a comunhão os segura.

 

Quando o pecado lhes pesa,

vão-se os índios confessar.

Dizem: “Quero melhorar...”

O Padre sobre eles reza

para ao seu Deus aplacar.

 

Gua.:

Suas faltas não avultam,

ao confessar malefícios,

mas usando de artifícios,

escravas moças ocultam

a grande de seus vícios.

 

Aim.:

Afastado,

“quando à morte for chegado,

diz o índio, expulsarei

todo o crime que ocultei”.

Gua.:

 Ouve, oh! sim; pois com

cuidado

seus maus atos desfiei.

 

Lou.:

Com todo vosso ódio, sei

que procurais condená-los.

Deles não me afastarei,

mas a Deus suplicarei

para sempre auxiliá-los.

 

Eles em mim confiaram,

construindo esta capela;

velhos vícios extirparam,

por patrono me tomaram

que em firmá-los se desvela.

 

Gua.:

É inútil seu alento:

eu tos arrebatarei,

apesar do teu sustento.

Eu vôo como este vento,

com eles eu voarei!

 

Aimbirê,

voemos com nossa fé

a alegrar meus aldeões!

Eu ranjo... eis os meus chifões,

esta dentuça minha é,

minhas garras e dedões!

 

            (coloca a aparelhagem)

 

Anj.:

Não espereis, como então,

turvar este povo ordeiro.

Cá estou como guardião

junto com Sebastião

e Lourenço o padroeiro.

 

Pobres de vós, alcateia,

que irritastes deus eterno,

desordenando esta aldeia.

 

            Fala com os Santos:

 

Eia! Amarrai-os, eia!

Queimar-vos-á vosso inferno!

 

            Os Santos prendem os dois diabos

 

Gua.:

Oh basta!

Lou.:

Não! o teu furor me agasta:

deste provas de querer

a minha igreja abater...

 

            São Sebastião ao Aimbirê:

 

Seb.:

Preso, estes grilhões arrasta!

Grita! Uiva!...

Aim.:

Ai, que desprazer!

 

Presos estes dois, fala o Anjo ao Saraiava que ficou escondido:

 

Anj.:

Quem está aqui deitado?

Morcego, cuíca será?

ou larva de panamá?

Vamos, cururu minguado!

Sai pra fora, gambá!

 

Arrebenta!

vamos, peste fedorenta!

borá, miaritacaca,

seboí, tamurataca!

Sar.:

Ai! Morro de morte lenta!

Quem me desperta e me

atraca?

 

Anj.:

Quem és tu?

Sar.:

Sou Saraiava,

Inimigo do francês.

Anj.:

É só essa a tua laia?

Sar.:

Eu fui porco desta praia,

espião de pouco prez.

 

Anj.:

Por isso és tu um imundo

Que as almas dos índios

mancha

Borra que és, porco do mundo,

eu te meto no profundo...

Sar.:

Ai! que o fogo me desmancha...

 

Ovas de peixe tu queres?

A ti darei em resgate.

Ou farinha d’água ingeres?

Dinheiro talvez preferes?

Anj.:

Não ouvi teu disparate.

 

Certo, tudo isto escondeste!

certo de alguém o roubaste!

Em casa de quem pousaste,

antes que aqui te meteste?

E que mais coisas furtaste?

 

Sar.:

Não! só destas três me valho:

pois da casa de cristão

só trago o que tenho em mão,

e é fruto do meu trabalho...

Nada há mais em meu bolsão!

 

Têm mais os do meu caminho...

Eu, para comprar cauim,

dei aos índios, com quem vim,

pois queriam beber vinho,

tudo, dando a tudo fim.

 

Anj.:

Vem e teu roubo apresenta,

que a eles restituirei.

Sar.:

Oh! não que me embebedei...

(minha sogra rabugenta

bebe mais do que julguei!)

 

Perdoa, irmão, não me impeças:

tenho dores, adoeci!

De todas as minhas peças

darei algumas a ti,

para rachar suas cabeças.

 

Toma o nome dos malvados,

exalta tua grandeza!

Anj.:

Onde encontraste tal presa?

Sar.:

Entrei pelos descampados

e os apanhei de surpresa.

 

Anj.:

Serão filhos de índios, hem?

Sar.:

Talvez seja todo o bando:

em longa os atando,

pelo cachaço também,

eu os fui enfileirando...

 

Meti revoltas na mata,

Lacei mulheres sozinhas.

Em espreitas bem mansinhas,

não dormi, à sua cata:

são presas eternas minhas!

 

Anj.:

Desejaste em vão maldades.

Irás para o fogo ardente:

ficarás eternamente

a tramar malignidades...

Eis-te preso de repente!

 

            Amarra-o o Anjo e diz:

 

Sar.:

Aimbirê!

Oi!

Sar.:

Livra-me, por mercê!

Este diabo me atou.

Aim.:

A mim também derrotou

Bastião, que me venceu e é

quem a prosa me tirou.

 

Ai! eu findo!

Guaixará, estás dormindo?

Tu não me queres vingar?

Gua.:

Que absurdo, esse gritar!

Lourenço, o queimado, é vindo

para me atar e queimar.

 

Anj.:

Que vossa terra maldita

no fogo para sempre arda!

Temos todos esta dita,

pela bondade infinita:

Estarei sempre de guarda!

 

Faz uma prática aos ouvintes:

 

Alegrai-vos,

filhos meus, e levantai-vos!

Para proteger-vos, eu

aqui estou; vim do céu.

Ao pé de mim ajuntai-vos:

dou-vos todo o auxílio meu!

 

Esta taba iluminando

ao vosso lado eu estou,

jamais daqui me afastando.

Pois de guardar este bando

o Senhor me encarregou.

 

Cada um de vós, do Senhor,

teve um anjo em proteção,

que vos dá todo o vigor

e ao diabo com seu furor

expulsa do coração.

 

Igualmente,

os servos do Onipotente:

São Lourenço virtuoso

calca o inferno furioso;

protegendo vossa gente,

a leva ao eterno gozo.

 

Também São Sebastião,

que foi soldado de guerra,

ao Tamoio forte então

derrotou de tal feição

que nem há mais sua terra.

 

Todas – Paranápucu

Jacutinga, Moroí,

Sariguéia, Guiriri,

Pindoba, Pariguaçu,

Curuçá, Miapeí,

 

Tapera Jabebiraci...

Morto ao defender seu lar

já não mais existe aí:

lado a lado os corpos vi

jazer no fundo do mar.

 

Seus bons franceses lhes dão

muito arcabuz, mas em vão.

Fizeram-lhes dano imenso

flexas de São Sebastião,

ao lado de São Lourenço.

 

Amam vossa alma, guardando-a,

compadecendo-se dela:

eternamente amparando-a,

já a tornam santa e bela,

de seus vícios extirpando-a

 

amarrarão o mau bando,

quando vier a tentar-vos;

não permitirão tocar-vos,

mas vossas almas amando,

 

por seus fiéis querem

tomar-vos

 

Já, enfim,

evitai o que é ruim:

desterrai a velha vida,

feio adultério, bebida,

mentira, briga, motim,

vil assassínio, ferida.

 

Amai vosso Criador,

a Jesus engrandecei,

cuja virtuosa lei

São Lourenço protetor

guardou para sua grei.

 

Homens maus o aprisionaram:

sofreu suportando o fogo,

com que eles vivo o

queimaram;

porém depois que o mataram,

teve paz e desafogo.

 

Procurai a sua estima,

amando o que vos mandei.

Confiando mais nele, sei

que guardará lá de cima

os que guardam sua lei.

 

Vinde, amados,

para Deus bem a seus lados!

Trazendo-o no coração,

ireis gozar na amplidão,

junto aos bem-aventurados,

em sua própria mansão!

 

Fala com os Santos, convidando-os a cantar, e com isto se despedem:

 

Um pouco agora cantemos!

Celebremos nossa vida!

Pois foram presos os demos

a façanha celebremos!

Saudemos sua saída!

 

Levam presos os diabos, os quais na última repetição da cantiga choram.

 

Cantiga: pelo tom de “Quien tiene vida en el cielo”

 

Alegrem-se nossos filhos!

Libertou-os Deus eterno!

Guaixará vá para o inferno!

Guaixará vá para o inferno!

Guaixará, Aimbiré, Saravaia

vão para o inferno!

 

Volta

 

Alegrem-se, em vida boa,

dos maus vícios dando cabo,

Não afastem Deus à toa

e repudiando ao diabo:

alegrem-se em paz tão boa!

 

Libertou-os Deus eterno!

Quaixará para o inferno!

Quaixará para o inferno!

Guaixará, Aimbiré, Saravaia

Vão para o inferno!

 

(retiram-se todos)

 

 

ATO III: NA FESTA DE S. LOURENÇO

Depois de S. Lourenço morto nas grelhas, o Anjo fica em sua guarda e chama os dois diabos, Aimbirê e Saravaia, que venham afogar Décio e Valeriano, que ficarão assentados em seus tronos.

 

Anj.: Aimbirê,

Ergue-te! vem cá ao pé.

Apressa-te, vamos, voa!

Aim.: Pronto, pronto! em hora boa!

(talvez mais prisão me dê

este pássaro-pessoa).

 

Anj.: Para teu despojo imenso

ficam os imperadores

que mataram São Lourenço.

Queimem-se no fogo intenso,

 em pena de seus horrores.

 

Aim.: Sim, com esses me contento:

serão hoje meus cativos;

à força os levarei vivos,

num prazer bem odiento

para os fogos sempre ativos.

 

Anj.: Eia, depressa, a afogá-los!

Que não vejam mais o dia!

Eia, depressa, a atirá-los

ao fogo de vossos valos!

Reuni a companhia!

 

Sar.: Pronto! Irei

 executar vossa lei,

reunir a minha laia.

Vem beber, ó Saravaial Vamos, hoje fende

i as cabeças desta arraia!

 

Há aqui muito cauim,             

Jaguaruna, meu avô?

Eh! embriagar-me já vou!

Irra! Para este festim,

Já todo de negro estou.

 

É aquele um  guaitacá

ou filho de guaianá?

Um termiminó talvez...

Um banquete desta vez

Jacaréguaçu me dá.

 

Vê o anjo e espanta-se dizendo:

 

Oh! que é aquilo a brilhar,

azul como um conindé?

Parece arara de pé...

Aim.:

Eis dá ordens de afogar:

oh! um anjo de Deus é!

 

Sar.:

Vinde aqui, meus fortes cabos,

Tamanduá, Tataurana!

Será que também me engana?

Não confio em tais diabos...

De esconder-me dá-me gana.

 

Aim.:

Vem aqui!

Sar.:

Ai! Morde-me o marigui:

Já me ataca e vai comendo.

Tenho medo, estou tremendo!

Sou pequenino e senti

Que me estão já desfazendo.

 

Aim.:

Os índio jamais entregam

seus filhos, mas os desviam,

e a afogá-los se negam.

Sar.:

Tens razão: se não confiam,

com mútuo engano se cegam.

 

Aim.:

Para! só porque bebeste,

queres ser tão valentão?

Ó ambuá, moleirão!

Pobre de mim, que quiseste

que vá contigo à prisão!

 

A quem vamos nós comer?

Aim.:

Inimigos de São Lourenço.

Sar.:

Esses vis chefes que venço?

Eu muitos nomes vou ter

muitos os nomes que penso.

 

Muito bem! sua barriga

há de ser o meu quinhão.

Aim.:

Vou morder seu coração.

Sar.:

Comerá a taba amiga

e toda nossa região.

 

Chama quatro companheiros que ajudem:

 

Tataurana,

traze tua muçurana!

Traze a ingapema, Urubu!

Tu também, Jaguaruçul

Caborê, à comezana

do inimigo corre tu!

 

Acodem todos quatro, com suas armas e  dizem:

 

Tat.:

Eis a muçurana inteira!

Eu comerei o que é braço,

Jaguaruçu o cachaço,

Urubu sua caveira,

Caborê o seu pernaço.

 

Uru.:

Cá estou!

Seus bofes e tripas vou

levá-los à velha aquela,

minha sogra: eis a panela

 para cozer, que lhe dou.

Eu terei a vista nela.

 

Jag.: 

Eis a ingapema listrada,

que quebra o crânio real.

Comerei sua miolada:

 sou guará, onça malhada,

 jaguaretê canibal.

 

Cab.:

Andei por aqui outrora

destroçando mil franceses,

indo-me glorioso embora.

Irei a teu lado agora

devorar estes fregueses.

 

Sar.: 

Não notaram nossa via...

Agachai-vos! eu à frente

Irei como vosso espia:

prendamo-tos à porfia,

e não nos prenda essa gente.

 

Vão todos agachados para Décio, que está praticando com Valeriano:

 

Déc.:

Valeriano, meu amigo,

cumpriu-se o desejo meu:

pois nem arte de judeu

libetou do meu castigo

o servo do Galileu.

 

Nem Pompeu e nem Catão,

nem César, nem o Africano,

nenhum grego nem troiano

puderam dar conclusão

a feito tão soberano.

 

Val.:

O remate, grão senhor,

desta tão grande façanha

foi mais que vencer Espanha.

Nunca rei e imperador

logrou coisa tão estranha.

 

(aponta a Aimbirê e seus comps.)

 

Mas, senhor, é um revel

que ali vejo, tão armado

com espadas e cordel,

e com gente de tropel,

de que vem acompanhado?

 

Déc.:

É  nosso grão Deus e amigo

Júpiter, sumo senhor,

que recebeu grão sabor

com o terrível castigo

e morte deste traidor.

 

E quer, por recompensar

as penas deste ladrão,

nosso império acrescentar,

com sua potente mão,

pela terra e pelo mar.

 

Val.:

Mais temo eu que ali vem

a seus tormentos vingar,

e a nós outros enforcar...

Oh! que feia cara tem!

Eu já começo a suar...

 

Déc.:

Enforcar?

Quem me pode a mim matar

ou mover meus fundamentos?

Pois nem a fúria dos ventos

nem a braveza do mar

nem todos os elementos.

 

Não temas que meu poder,

que meus deuses imortais

me quiseram conceder,

jamais se pode vencer,

pois não há forças iguais.

 

De meu cetro imperial

tremem os reis e tiranos.

Venço todos os humanos.

Quase posso ser igual

a meus deuses soberanos.

 

Val.:

Oh! que terrível figura!

Não posso mais aguardar,

que me sinto já queimar!

Vamo-nos, que é grão loucura

tal encontro aqui esperar.

 

Ai, ai! que grandes calores!

Já não tenho desafogo.

Déc.:

Ai! que terríficas dores!

Ai, que ferventes ardores,

que me abrasam como fogo!

 

Ó paixão!

Ai de mim! este é Plutão

que vem de seu Aqueronte,

ardendo como tição,

a levar-nos de roldão

ao fogo de Flegetonte.

 

Oh coitado,

que me queimo! Esse queimado

me queima com grão furor.

Ó mofino imperador!

todo me vejo cercado

de penas e  de pavor,

 

que o diabo,

armado de cabo a rabo

com as fúrias infernais,

vem malhar os criminais.

Não sei como não acabo

com angústias tão mortais.

 

Val.:

Ó Décio, cruel tirano,

já pagas e pagará

contigo Valeriano,

porque Lourenço, sem dano

assado, nos assará.

 

Aim.:

Oh! castelhanos malditos,

(são castelhanos eu acho)

alegram-me esses seus ditos

de castelhanos invictos...

Daqui a pouco os despacho!

 

Quero virar castelhano,

Em polida companhia

Com Décio e com Valeriano,

Porque o espanhol ufano

Sempre guarda cortesia.

 

Ó mui alta majestade,

osculo as mãos infelizes

de vossa grão crueldade,

pois justiça nem verdade

guardastes, sendo juizes.

 

Sou mandado

por São Lourenço queimado

a levar-vos para casa

onde seja confirmado

vosso imperial estado,

em fogo que sempre abrasa.

 

Oh! que tronos e que camas

já vos tenho aparelhadas,

nessas escuras moradas,

de vivas e eternas chamas,

sem nunca ser apagadas!

 

Val.:

Xe, akái!

Aim.:

Viestes do Paraguai,

que falais em guarani?

Todas línguas aprendi...

Avança tu, Saravai,

aqui teus golpes, aqui!

 

(Sarav. avança para Val.)

 

Val.:

Oh, basta! que me estraçalhas:

eu não tenho muitas falhas...

Prende antes o meu chefão!

Sar.:

Não! és tu o meu quinhão,

és presa que bem me calhas!

 

Déc.:

Oh! miserável de mi,

que nem basta ser tirano,

nem me mostrar castelhano!...

Que é do mando em que me vi,

 

de meu poder soberano?

 

Aim.:

Jesus, Deus da redenção,

Que tu, traidor, perseguiste,

Te dará sorte muito triste,

a quem malvado seguiste.

 

Pois me honraste

e sempre me contentaste,

ofendendo a Deus eterno,

é justo que em meu inferno,

palácio que tanto amaste,

não passes mal teu inverno...

 

Porque esse ódio inveterado

de teu duro coração

não pode ser abrandado,

se não for retemperado

com água do Flegetão.

 

Déc.:

Olhai que consolação,

para que se está queimando!

Sumos deuses, para quando

dilatais-me a salvação,

que vivo me estou queimando?

 

Ai, ai! que mortal desmaio!

Esculápio, não ouvis?

Jupiter, porque dormis?

Que é de vosso ardente raio?

 

Que fazeis? Não acodis?

 

Aim.:

Que dizeis?

Mal deprioris sofreis?

Tendes o pulso alterado!

É grande cor de costado

este mal de que morreis!

Haveis de ser bem sangrado!

 

Dias há que esta sangria

se guardava a vós, sandeus,

que sangráveis, noite e dia,

com obstinada porfia,

esses Mártires de Deus.

 

Muito desejo beber

vosso sangue imperial.

Não me leveis isso a mal,

que com isto quero ser

homem de sangue real.

 

Déc.:

Olhai bem, que disparate

e polido desvario!...

Deitem-me dentro dum rio,

antes que o fogo me mate,

ó   deuses, em que confio!

 

Não quereis

socorrer-me ou não podeis?

Oh! malditos fementidos,

malvados, desconhecidos,

que nada vos condoeis

de quem fostes tão servidos!

 

Se pudesse bater asas,

vos iria desprender

do trono de vossas casas,

e lançar-vos nessas brasas

seria meu grão prazer.

 

Aim.:

Parece-me ser chegada

a hora dos frenesis,

com a febre redobrada,

a qual será mal curada

pelos deuses que servis.

 

Ou são gabos

de cavaleiros brabos

que têm língua e não tutano!

E por isso, tão ufano,

vos acolhestes aos rabos

desse estilo castelhano...

 

Sar.:

Eis o que és.

Pensavas dar, de revés,

espantosos cutilaços;

mas enfim nossos balaços

deram contigo em través,

com mui poucos canhoaços.

 

Porém, que de bofetões

lhes tenho logo de dar!

Os tristes, sem descansar,

ao chegar de meus tições,

como perros hão de uivar.

 

Val.:

Ó ferida!...

Arranca-me a pobre vida

pois minha alta condição,

contra justiça e razão,

veio a ser tão abatida,

que morro como ladrão!

 

Sar.:

Não é outro o galardão

que dou aos meus criados,

senão morrer enforcados,

e depois, sem remissão,

ao fogo ser condenados.

 

Déc. :

Pois esta é uma pena dobrada,

Que me causa maior dor:

Que eu, universal senhor,

Morra morte desonrada

De forca, como traidor.

 

Já, se fora pelejando,

dando talhos e reveses,

pernas e braços cortando,

como fiz com os franceses,

acabara triunfando.

 

 

Aim.:

Parece que estais pensando

poderoso imperador,

quando, com bravo furor,

matastes, traição armando,

Filipe, vosso senhor.

 

Por certo que me alegrais

e se cumprem meus anseios,

c'os desvairos que soltais;

porque o fogo, em que

queimais

vos causa tais devaneios.

 

Déc.:

Bem entendo

que este fogo, em que me

acendo, é pena da tirania;

pois com tão cruel porfia,

aos pobres cristãos prendendo,

com o fogo os destruía.

 

Mas em minha monarquia,                                                          

que eu acabe em tal pregão,

morrendo como ladrão,                                                       

é terrível agonia                                                                  

e dobrada confusão!

 

Aim.:

Como? Pedes confissão?...

A voar sem asas te abalas!  

Os crimes, em que te entalas,         

sim, merecem ter perdão:               

ohl pede-o à deusa Palas!...

 

ou a Nero,

esse carniceiro fero

do fiel povo cristão.

Aqui está teu irmão,

Valeriano, tão sincero!

Recebe-o de sua mão!...

 

Déc.:

Esses amargosos chistes

e baldões

aumentam minhas paixões,

minhas dores,

com tão terríveis ardores

como de ardentes tições.

 

E com isto crescem mais

estes fogos que padeço.

Acaba, que já me apresso,

em tuas mãos, Satanás,

ao tormento que mereço.

 

Aim.:

Oh! quanto vos agradeço

toda essa boa vontade!

Eu, com liberalidade,

grão refresco vos of’reço

para vossa enfermidade,

 

nessa cova,

onde o fogo se renova

com ardores perenais;

lá vossos crimes mortais

farão sempiterna prova

de tormentos eternais.

 

Déc.:

Que fazes, Valeriano,

bom amigo?

Testemunhas meu castigo,

finalmente,

atado, com a corrente

do fogo sem fim, comigo.

 

Val.:

Em má hora! Já são horas!...

Vamos logo

deste fogo ao outro fogo

eternal,

cuja chama perenal

nunca dará desafogo!

 

Aim.:

Sus! azinhal

Vão logo à nossa cozinha,

Saravaia!

Sar.: 

Não me afasto dessa laia!

 

Hoje queima essa gentinha

a brasa que não desmaia!

 

Déc.:

Abrasa-me o fogo insano,

assa-me Lourenço assado.

Bem que eu seja um soberano,

Deus me abrasa, por meu dano,

vingando seu servo amado.

 

Aim.:

É vulgar

que tu quiseste matar

Lourenço, de Deus amigo.

Venho pois te castigar.

Eis aqui teu inimigo:

meu fogo te há de queimar.

 

Afogam-nos e entregam-nos aos quatro beleguins, e cada dois levam o seu:

 

Aim.:

Vinde aqui!

Os malditos conduzi,

para no fogo queimá-los;

a moqueca os reduzi,

para tostá-los, assá-los,

derretê-los, cozinhá-los!

 

Ficam ambos (Aim. e Sar.) no terreiro com as coroas nas cabeças, e diz Saraivaia:

 

Sar.:

Oh! eu, vencedor, temido

de malvados desta gleba!

chefe embor conhecido,

dou-me hoje novo apelido

do sapo Cururupeba!

 

Como os tais,

eu mato os que pecam mais,

dando-os comigo ao meu poço:

homens todos, velho e moço,

presas minhas eternais,

levo todos como almoço.

 

(Aim. e Sar. retiram-se)

 

ATO IV: Sendo o corpo de São Lourenço amortalhado e posto na tumba, entra o Anjo, com o Temor e Amor de Deus, a despedir a obra, e no cabo acompanham o Santo para a sepultura.

 

Anj.:

Vendo nosso Deus benigno

vossa grande devoção

que tendes, e com razão,

a Lourenço, mártir digno

de toda a veneração,

 

determina, por seus rogos

e martírio  singular,

a todos sempre ajudar,

para que escapeis dos fogos

em que os maus se hão de

queimar.

 

Dois fogos traziam n’alma

com que as brasas resfriou,

e no fogo, em que se assou,

com tão gloriosa palma,

dos tiranos triunfou.

 

Um  fogo foi o Temor

do bravo fogo infernal,

e, como servo leal,

por honrar o seu Senhor,

fugiu da culpa mortal.

 

Temor de Deus, com seu recado:

 

(1º Mote)

 

“Pecador,

“engoles, com grão sabor,

“o pecado:

“e não te vês afogado

“com misérias!

“e tuas feridas sérias

“não sentes, desventurado!

 

(2º Mote)

 

“É o inferno,

“com seu fogo sempiterno,

“tua sorte:

“se não segues o teu  norte

“nessa cruz,

“em a qual morreu Jesus,

“por que morra tua morte.

 

Deus te envia esta mensagem

com amor.

A mim, que sou seu Temor,

me convém

declarar o que contém,

por que temas o Senhor.

 

Glosa e declaração do recado:

 

                      

 

Espantado estou de ver,

pecador, teu desafogo.

Com tantos crimes a fazer,

como vives, sem temer

aquele espantoso fogo?

 

Fogo que nunca descansa,

mas que sempre causa dor,

e, com seu bravo furor,

rouba-lhe toda a esperança

ao maldito “pecador”.

 

Pecador, como te entregas

a teus vícios, tão obsceno?

Tu deles estás tão pleno,

engulindo, tão a cegas,

a culpa, com seu veneno?

 

Veneno de maldição

tragas, sem nenhum temor,

e, sem sentir tua dor,

e carnal deleitação

“engoles, com grão sabor”.

 

Sabor parece o pecado,

muito mais doce que o mel,

porém o inferno cruel

depois te dará bocado,

mais amargoso que o fel.

 

Fel beberás, sem medida,

pecador desatinado,

tu’alma em fogo encendida.

Esta será a saída

do deleite do “pecado”.

 

O pecado que tu amas

São Lourenço tanto odiou,

que mil penas suportou,

e queimado numas chamas,

por não pecar, expirou.

 

Expuirou, não se entregou:

tu te entregas ao pecado,

no qual te tem enforcado

Lucifer, que te afogou...

“e não te vês afogado!”

 

Afogado pelo esgano

do diabo, se envolveu

Décio com Valeriano,

infiel, cruel, tirano,

no fogo que mereceu.

 

Mereceu-te a fé a vida,

mas, com faltas deletérias,

já a tens quase perdida,

e teu Deus, bem sem medida,

ofendido “com misérias”.

 

Com  misérias e pecados,

tu’alma de Deus ausente,

presa na infernal corrente,

pagará co’os condenados,

pela culpa, duramente.

 

Duramente te darão

remorso tuas misérias.

Tuas culpas deletérias

teus tormentos dobrarão

“e tuas feridas sérias”.

 

Sérias são tuas feridas.

Pecador, porque não choras?

Não vês, com tuas demoras,

que estão todas corrompidas

e cada dia empioras?

 

Empioras e definhas,

mas teu perigoso estado,

a pressa e grande cuidado,

com que ao inferno caminhas,

“não sentes, desventurado?”

 

2º

 

Que descuido intolerável

tua vida!

Está tu’alma imergida

em o lodo,

e te ris  do mundo todo,

nem sentes tua caída!

 

Ó traidor!

que negas teu Criador,

Deus eterno,

Que se fez menino terno,

por salvar-te:

e tu queres condenar-te,

e o que não vês “é o inferno”.

 

Ó insensível!

que não sentes o terrível

espanto, que causará

o Juiz, quando virá,

com a catadura horrível,

e à morte te entregará.

 

Então tua alma será

sepultada lá no inferno,

onde morte não terá;

mas viva se queimará,

“com o seu fogo sempiterno!”

 

Ó perdido!

ali serás corrompido,

sem nunca te corromper.

Ali na vida sem viver,

ali choro e grão gemido,

ali morte sem morrer.

 

Pranto será o teu rir,

teu comer, fome de morte,

teu beber, sede bem forte,

teu sono, nunca dormir,

tudo isto é a “tua sorte”.

 

Ó mofino!

pois que verás, de contino,

ao horrendo Lucifer,

sem nunca chegar a ver

esse conspecto divino

de quem tens todo teu ser.

 

Acaba já por temer

a Deus que é o teu suporte,

nele achando a tua sorte.

Pois não podes dele ser

“se não segues o teu norte”.

 

Homem louco!

se teu coração já toco,

mudem-se as alegrias

em tristezas e agonias!

Olha que te falta pouco

para findar os teus dias!

 

Não ofendas mais, revel,

quem te ganhou vida e luz,

com sua morte cruel,

bebendo vinagre e fel

moribundo “nessa cruz”. 

 

Ó malvado!

eis morreu crucificado,

sendo Deus, por te salvar.

Pois que podes esperar,

se foste tu o culpado

e não cessas de pecar?

 

Tu o ofendes, ele te ama!

Cega ele, por dar-te luz!

E tu, mau, pisas a cruz,

 aquela tão dura cama,

“em a qual morreu Jesus!”

 

Ó cegueira!

que alguém começar não queira

a chorar por teu pecado!

e tomar por advogado

Lourenço, que na fogueira

por Jesus morreu queimado!

 

Teme a Deus, juiz tremendo,

na hora em que a vida se corte,

só para Jesus vivendo:

pois deu a vida morrendo,

“por que morra tua morte.”

 

 Amor de Deus, com seu recado:

 

“Ama a Deus, que te criou,

“homem, de Deus muito amado!

“Ama, com todo cuidado,

“a quem primeiro te amou.

“Seu próprio Filho entregou

“à morte, por te salvar.

“Que mais te podia dar,

“pois, quanto tem, te doou?

 

Por mandado do Senhor

te disse o que tens ouvido.

Abre todo teu sentido,

porque eu, que sou seu Amor,

seja em ti bem imprimido.

 

Glosa e declaração do recado:

 

Todas as coisas criadas

conhecem seu Criador, 

e todas lhe têm amor,

pois dele são conservadas,

cada qual em seu vigor.

 

Pois com tanta perfeição,

o seu saber te formou,

homem capaz de razão,

de todo teu coração

“ama a Deus que te criou.”

 

Se amas a criatura,

porque te parece bela,

aquela vista singela

da infinita formosura

ama sobre toda aquela.

 

Desta divina lindeza

deves ser enamorado,

e seja tua alma presa

daquela suma beleza,

“homem, de Deus muito amado!”

 

Aborrece todo mal,

com despeito e grão desdém.

E pois tu és racional,

abraça a Deus imortal,

sumo, único e todo bem.

 

Este abismo de fartura,

que jamais é esgotado,

esta fonte viva e pura,

este rio de doçura,

“ama com todo cuidado.”

 

Antes que criasse nada,

já a suma majestade

a vida te tinha dada,

tua alma tinha abraçada

com eterna caridade.

 

Por fazer-te todo Seu,

sua morte cativou;

e pois todo te doou,

dá tu todo esse amor teu

“a quem primeiro te amou.”

 

Doou-te uma alma imortal

e capaz do Imensurado,

por que fosses ancorado

naquele bem eternal,

sem futuro e sem passado.

 

Depois que em morte tombaste,

nova vida te doou

pois sair não alcançaste,

da culpa, a que te entregaste,

“seu próprio filho entregou.”

 

Entregou-o por escravo,

e quis que fosse vendido,

para que tu, redimido

do poder do leão bravo,

fosses sempre agradecido.

 

Por que tu não morras, morre,

com amor mui singular...

Oh! quanto deves amar

a Deus que a entregar-se corre

“à morte, por te salvar!”

 

O Filho, que o Pai te deu,

a seu Pai te dá por pai;

a graça te concedeu,

que, quando na cruz morreu,

sua Mãe te deu por mãe.

 

Deu-te fé com esperança,

a si mesmo, por manjar,

para em si te transformar,

com a bem-aventurança.

“Que mais te podia dar?”

 

Em paga por isto tudo,

 ó ditoso pecador,

só pede ele teu amor.

Mete pois o teu estudo

por ganhar a tal Senhor.

 

Dá a vida pelos bens

que sua morte ganhou.

Seu amor te conquistou:

dá-lhe tudo quanto tem,

“pois, quanto tem, te doou!”

 

DESPEDIDA

 

Olhai, meus irmãos, para o céu, que é tão belo:

vereis a Lourenço reinando com Deus,

ao Rei que é dos reis a rogar pelos seus,

que estão festejando na terra um modelo.

Daqui por diante guardai grande zelo

que seja Deus sempre temido e amado,

e mártir tão santo, de todos honrado:

tereis seus favores e doce desvelo.

 

E, pois celebrais, com tanta afeição,

seu martírio, tomai meu conselho:

sua vida e virtudes olhai por espelho,

chamando-o sempre como grão devoção.

Por sua oração vós tereis o perdão;

de vosso inimigo, perfeita vitória.

Após vossa morte vereis, já na glória,

a face divina, com clara visão.

 

 

ATO V: Dança que se fez na procissão de São Lourenço, de doze meninos:

 

1º

 

Cá estamos jubilosos,

em tua celebração.

Por teus rogos valiosos,

Deus, que nos dê os seus gozos,

fique em nosso coração.

 

2º

 

Nós ficaremos contigo,

São Lourenço, padroeiro:

tu nosso país inteiro

guarda de todo inimigo.

Rejeito o viver antigo:

em pagés não confiando,

nem dançando, nem girando,

curandeirismo não sigo.

 

3º

 

Tua grande confiança

não deixou teu coração:

ponhamos por tua mão

no pai Jesus esperança,

Para a alma pureza alcança,

de misérias arejando-a:

vem também tu e, encantando-a,

com o teu Jesus avança!

 

4o

 

Repleto do amor dos céus

foi teu coração outrora:

olha tu por nós agora!

Amemos o nosso Deus

que, qual pai, nos revigora!

 

5º

 

Obedeceste ao Senhor, 

cumprindo sua vontade.

Oh! vem tu, que és nosso amor!

Celebremos com fulgor

teu dia, na santidade.

 

6º

 

Com tuas bênçãos potentes,

curaste enfermos do povo:

teus filhos estão doentes,

só querem leis deprimentes...

Oh! vem curá-los de novo.

 

7º

 

Crendo na fé do Senhor,

sofreste a morte de ateus:

concede-nos teu vigor,

para suportar a dor,

como tu, no amor de Deus.

 

8º

 

Têm medo de ti os demos,

para os quais tu és terrível:

expulsa-os de nosso nível;

nas ocas não os achemos,

tornado nossa alma horrível.

 

9º

 

Gentios imperadores

por sobre brasas te assaram,

e o corpo todo sarjaram

em férrea grelha de dores.

Suspiramos nos ardores

de contemplar Quem nos fez:

que venha o Pai, desta vez,

abrasar nossos amores!

 

10º

 

Treme de ter-te matado

esses maus chefes antigos.

Vem guardar-nos, muito amado!

que fiquemos a teu lado,

assustando aos inimigos.

 

11º

 

Aos que te mataram dás,

por pena, o fogo infernal.

Tu, na glória divinal,

já para sempre estarás.

Como tu, Deus Pai, em paz,

tenhamos no coração.

Junto a ti, em seu torrão,

Vida longa nos darás.

 

12º

 

Nós te metemos aqui,

nas mãos, a nossa guarida,

para ficarmos em ti.

Oh! ama-nos sempre assim,

enquanto durar a vida.

 

Finis.

Retirado de:

ANCHIETA, P. Joseph. Teatro de Anchieta. São Paulo: Edições Loyola, 1977. Obras completas 3ºvol. Originais acompanhados de tradução versificada, introdução e notas pelo Pe. Armando Cardoso S. J.