Noam Chomsky
O estudo da linguagem é um dos ramos mais antigos de
investigação sistemática, com marcos que rastreamos na Antiguidade
da Índia à Grécia, e uma história rica
Não surpreende que tamanho fascínio viesse a ser exercido
pela linguagem ao longo dos anos. A faculdade humana de linguagem
parece ser uma verdadeira "propriedade da espécie", variando pouco
de indivíduo a indivíduo e sem , em outra parte, nada de análogo que
seja significativo. Provavelmente os fenômenos análogos mais
significativos são encontrados nos insetos, um bilhão de anos
distantes na evolução. Não há hoje nenhuma boa razão para desafiar a
visão cartesiana de que a habilidade para fazer uso de signos
linguísticos para expressar pensamentos formados livremente marque
"a verdadeira distinção entre o homem e o animal" ou a máquina, quer
entendamos por "máquina" os autômatos que fascinaram imaginações nos
séculos 17 e 18, quer os que estão estimulando o pensamento e a
imaginação em nossos dias.
Além de tudo isso, a faculdade da linguagem tem papel
crucial em todos os aspectos da vida, do pensamento e da interação
humana. Ela é em grande parte responsável pelo fato de que no mundo
biológico somente os seres humanos têm uma história, uma evolução
cultural e uma diversidade algo complexa e rica, e também pelo
sucesso biológico no sentido técnico de que a população humana é
numerosa.
Um cientista de Marte observando as estranhas ações aqui na
Terra dificilmente deixaria de ficar impressionado com a emergência
e a significação dessa forma de organização intelectual
aparentemente única. Mais natural ainda é que o tema, com seus
muitos mistérios, tivesse estimulado a curiosidade daqueles que
procuram compreender sua própria natureza e seu lugar no conjunto
maior das coisas do mundo.
A linguagem humana está baseada numa propriedade elementar
que parece também ela ser biologicamente isolada: a propriedade da
infinitude discreta que, em sua forma mais pura, é exibida pelos
números naturais 1, 2, 3,... As crianças não apreendem esta
propriedade; se a mente não possuísse já de antemão os princípios
básicos, não haveria quantidade de evidência capaz de provê-los. Do
mesmo modo, nenhuma criança precisa aprender que existem frases com
três palavras e frases com quatro palavras mas não com três palavras
e meia, e que esse número pode ir aumentando sem ter fim; é sempre
possível construir uma frase mais complexa, com uma forma e um
sentido definidos. Tal conhecimento nos chega necessariamente "originário
da mão da natureza, " nas palavras de David Hume, como parte da
nossa dotação biológica.
Esta propriedade intrigou Galileu, que considerava a
descoberta de um meio de comunicar "nossos pensamentos mais secretos
a outra pessoa com 24 diminutos caracteres" como a maior de todas as
invenções humanas. A invenção destes caracteres é bem sucedida
porque reflete a infinitude discreta da linguagem que é representada
fazendo uso deles. Poucos anos mais tarde, os autores da gramática
de Port Royal ficaram impressionados com a "maravilhosa invenção" de
um meio de construir a partir de umas poucas dúzias de sons uma
infinidade de expressões que nos tornam capazes de revelar a outras
pessoas o que pensamos, imaginamos e sentimos. Numa visão
contemporânea, não como uma invenção, mas não menos
maravilhoso como produto da evolução biológica, sobre a qual
virtualmente nada se sabe, neste caso.
A faculdade de linguagem pode, razoavelmente, ser
considerada como um órgão linguístico no mesmo sentido em que
na ciência se fala, como órgãos do corpo, em sistema visual ou
sistema imunológico ou sistema circulatório. Compreendido desse
modo, um órgão não é alguma coisa que possa ser removida do corpo
deixando intacto todo o resto. Um órgão é um subsistema que é parte
de uma estrutura mais complexa.
Nós temos a esperança de compreender a complexidade do todo
em sua plenitude por meio da investigação das partes que têm
características distintivas, e das interações entre elas. Do mesmo
modo procede o estudo da faculdade de linguagem.
Assumimos ainda que o órgão da linguagem é como outros
órgãos no sentido de que seu caráter fundamental é uma expressão dos
gens. De que maneira se dá isto é uma pergunta que permanece sendo
um projeto de investigação a longo prazo, porém, por outros meios,
podemos investigar o estado inicial geneticamente
determinado. Evidentemente, cada língua é o resultado da interação
de dois fatores: o estado inicial e o curso da experiência. Podemos
conceber o estado inicial como um mecanismo de aquisição de
linguagem que recebe como dados de entrada (input) a
experiência, e fornece como saída (output) a língua – esta
que constitui um objeto internamente representado na mente/cérebro.
Tanto a entrada quanto a saída estão à nossa disposição para serem
examinadas: podemos estudar o transcorrer da experiência e podemos
estudar as propriedades das línguas que são adquiridas. O que
aprendemos assim fazendo pode nos dizer muita coisa a respeito do
estado inicial, intermediário entre a entrada dos dados e a língua
pronta. Mais ainda, há muita razão para crer que o estado inicial é
comum no âmbito da espécie: se meus filhos tivessem sido criados em
Tokyo, eles falariam japonês, tal como todas as crianças de lá. Isto
significa que evidências da língua japonesa têm aporte direto sobre
assunções feitas com respeito ao estado inicial para o inglês. Por
esses caminhos, é possível estabelecer condições empíricas fortes a
serem satisfeitas pela teoria do estado inicial, e também é possível
propor vários problemas para a biologia da linguagem: De que modo os
genes determinam o estado inicial, e quais são os mecanismos
envolvidos nesse estado inicial do cérebro e nos estados que ele
assume mais tarde? Estes são problemas muito árduos, até para
sistemas muito mais simples que permitem a experimentação direta,
mas mesmo assim é possível que alguns estejam dentro do alcance das
fronteiras da investigação.
Para poder prosseguir, deveríamos colocar com maior clareza
o que entendemos por uma língua. Tem havido muita
controvérsia apaixonada a respeito da resposta correta para esta
pergunta, e, de maneira mais geral, para a pergunta sobre como
deveriam ser estudadas as línguas. A controvérsia não tem razão de
ser, porque a resposta correta não existe. Se tivermos interesse em
compreender como se comunicam as abelhas, tentaremos apreender algo
sobre a natureza interna das abelhas, suas organizações sociais, e
seu meio ambiente físico. Estas abordagens não são conflitantes; são
reciprocamente comprovantes. O mesmo se dá com o estudo da linguagem
humana: pode ser investigado de um ponto de vista biológico e de
inúmeros outros: o sociolinguístico, o de língua e cultura, o
histórico e assim por diante. Cada uma dessas abordagens define o
objeto de sua investigação sob a luz de seus próprios interesses; e,
se for racional, cada uma tentará apreender o que puder do que vem
das outras abordagens. Por que razão estas são matérias que
despertam muita paixão no estudo dos seres humanos seja talvez uma
pergunta interessante, mas por ora vou pô-la de lado.
A abordagem que estive delineando se interessa pela
faculdade de linguagem: seu estado inicial, e os estados que ela
assume. Suponha que o órgão de linguagem de Pedro se encontra no
estado L. Podemos conceber L como a "língua internalizada" de Pedro.
Quando aqui falo de uma língua, isto é o que tenho
Adaptando um termo tradicional a um novo arcabouço,
chamamos a teoria da língua de Pedro de gramática da sua
língua. A língua de Pedro determina um conjunto de expressões
infinito, cada uma com seu som e sua significação. Em terminologia
técnica, a língua de Pedro gera as expressões da sua língua.
Por isso, a teoria da língua dele é chamada de gramática gerativa.
Cada expressão é um pacote de propriedades, que proporcionam
instruções aos sistemas de desempenho de Pedro: seu aparelho
articulatório, seus modos de organizar seus pensamentos, e assim por
diante. Com sua língua e seus sistemas de desempenho associados
devidamente instalados, Pedro possui um vasto acervo de conhecimento
sobre o som e o sentido de expressões, e uma capacidade
correspondente de para interpretar aquilo que ouve, expressar seus
pensamentos e utilizar a sua língua de outras várias formas.
A gramática gerativa teve origem no contexto do que muitas
vezes é chamado de a revolução cognitiva dos anos 50, e foi
um fator importante no desenvolvimento dela. Seja ou não apropriado
o termo revolução, aconteceu uma mudança de perspectiva
importante: do estudo do comportamento e seus produtos (
textos, por exemplo) para os mecanismos internos que entram em jogo
no pensamento e na ação.
A perspectiva cognitiva considera o comportamento e seus
produtos não como o próprio objeto da investigação, mas como dados
que podem proporcionar evidências sobre os mecanismos interiores da
mente e sobre as formas com que esses mecanismos operam ao executar
ações e interpretar experiência. As propriedades e padrões que eram
o foco de atenção na linguística estrutural têm seu lugar nesta
abordagem, mas como fenômenos a serem explicados, juntamente com
muitos outros, em termos dos mecanismos internos que geram
expressões. É uma abordagem mentalista, mas mentalista num
sentido que deveria ser não controvertido. Ela se importa com
aspectos mentais do mundo, que ficam lado a lado com os aspectos
mecânicos, químicos, ópticos e outros. Ela se propõe a estudar um
objeto real no mundo natural – o cérebro, seus estados e funções – e
assim levar o estudo da mente para uma eventual integração com as
ciências biológicas.
A revolução cognitiva renovou e deu forma nova a
muitos dos insights, realizações e divagações do que
poderíamos chamar de a primeira revolução cognitiva dos
séculos 17 e 18, que foi parte da revolução científica que modificou
tão radicalmente nosso entendimento do mundo. Foi visto naquela
época que a linguagem envolve o uso infinito de meios finitos,
na expressão de von Humboldt; porém, só foi possível desenvolver
esse insight de maneira muito limitada, porque as ideias
básicas permaneciam vagas e obscuras. Em meados do século XX, os
avanços nas ciências formais haviam fornecido conceitos apropriados
em forma bem precisa e clara, tornando possível dar conta com
precisão dos princípios computacionais que geram as expressões de
uma língua e capturar com isso, ao menos em parte, a ideia do uso
infinito de meios finitos. Outros avanços também abriram caminho
para a investigação de questões tradicionais com mais esperança de
sucesso. O estudo da mudança linguística havia registrado
realizações muito importantes. A linguística antropológica trazia
uma compreensão muito mais rica da natureza e variedade das línguas,
também minando numerosos estereótipos. E certos tópicos,
especialmente o estudo dos sistemas fonológicos, tinham dado um bom
avanço dentro da linguística estrutural do século XX.
Os primeiros esforços para colocar em prática o programa da
gramática gerativa revelou sem demora que, mesmo nas línguas mais
bem estudadas, propriedades elementares haviam passado sem
reconhecimento explícito, e que as gramáticas e dicionários
tradicionais mais abrangentes apenas tocam a superfície.
As propriedades básicas das línguas são invariavelmente
pressupostas, passam sem reconhecimento e não vêm expressas. Fazer
isso é perfeitamente apropriado se o objetivo é ajudar pessoas a
apreender uma segunda língua, a descobrir qual é o sentido
convencionado e a pronúncia de palavras, ou a ter uma ideia geral de
como diferem as línguas. Porém, se nossa meta é compreender a
faculdade de linguagem e os estados que ela assume, não podemos
pressupor tacitamente a inteligência do leitor. Antes, é este
o objeto da pesquisa.
O estudo da aquisição de língua leva a mesma conclusão. Um
olhar cuidadoso sobre a interpretação de expressões revela bem
rapidamente que desde os primeiros estágios, a criança sabe muito
mais do que lhe foi fornecido pela experiência. Isto é uma verdade
até mesmo para palavras simples. Nos momentos de pico do crescimento
da língua, uma criança está adquirindo palavras numa velocidade
aproximada de uma por hora, com exposição extremamente limitada e em
condições grandemente ambíguas. As palavras são compreendidas de
modos sutis e intricados que vão muito além do alcance de qualquer
dicionário, e que estão apenas começando a ser investigados. Quando
vamos além das palavras isoladas, a conclusão se torna ainda mais
dramática. A aquisição de língua é bem semelhante ao crescimento de
órgãos de maneira geral; é uma coisa que acontece com a criança, e
não uma coisa que ela faz. E embora basicamente o meio ambiente
importe, o curso geral do desenvolvimento e os traços essenciais
daquilo que emerge são predeterminados pelo estado inicial. Mas, o
estado inicial é uma posse comum a todos os homens. É necessário,
então, admitir que em suas propriedades essenciais, e mesmo até o
mínimo detalhe, as línguas são moldadas na mesma fôrma. O cientista
de Marte poderia arrazoadamente concluir que existe uma só língua
humana, com diferenças apenas pelas margens.
Na prática de nossa vida, o que importa são as pequenas
diferenças, e não as semelhanças abrangentes, que nós
inconscientemente tomamos como certas. Mas se desejamos compreender
que tipo de criatura somos, devemos adotar uma postura bem
diferente, basicamente a de um marciano estudando seres humanos.
Este é, de fato, o ponto de vista que adotamos quando estudamos
outros organismos, ou os próprios seres humanos afora os aspectos
mentais – humanos do pescoço para baixo, metaforicamente
falando. É inteiramente razoável estudar da mesma maneira o que fica
do pescoço para cima.
À medida que muitas línguas foram investigadas com cuidado,
a partir do ponto de vista da gramática gerativa, ficou claro que
tinham sido radicalmente subestimados, em igual medida, sua
diversidade, sua complexidade e o grau em que são determinadas pelo
estado inicial da faculdade de linguagem. Ao mesmo tempo, sabemos
que a diversidade e complexidade não podem ser mais que mera
aparência superficial.
Estas foram conclusões surpreendentes, paradoxais, porém,
inegáveis. Elas colocam de forma contundente aquele que veio a se
tornar o problema central do estudo moderno da linguagem: como
podemos mostrar que todas as línguas são variações sobre um mesmo
tema, e também, ao mesmo tempo, registrar fielmente suas
propriedades intricadas de som e sentido, superficialmente diversas?
Uma teoria genuína da linguagem humana precisa satisfazer duas
condições: adequação descritiva e adequação explicativa.
A gramática de uma língua particular satisfaz a condição de
adequação descritiva na medida em que oferece uma descrição completa
e minuciosa das propriedades da língua, ou seja, daquilo que o
falante dessa língua sabe. Para satisfazer as condições de adequação
explicativa, uma teoria de língua deve mostrar como cada língua
particular pode ser derivada de um estado inicial uniforme sob as
condições-limite impostas pela experiência. Desse modo, ela
fornece explicação para as propriedades das línguas em um nível mais
profundo.
Há considerável tensão entre estas duas tarefas da
pesquisa. A busca da adequação descritiva parece conduzir à
crescente complexidade e variedade dos sistemas de regras, enquanto
a busca da adequação explicativa requer que a estrutura das línguas
seja invariante, exceto nas partes marginais. Foi essa tensão que em
grande parte deu a guia para a pesquisa. A maneira natural de
resolver a tensão é desafiar a ideia que a tradição assumia e que
foi tomada pela gramática gerativa em sua fase inicial, de que uma
língua é um sistema complexo de regras, e cada regra é específica de
línguas particulares e construções gramaticais particulares: regras
para formar orações relativas em hindi, sintagmas verbais em banto,
passivas em japonês, e assim por diante. Considerando a adequação
explicativa, tem-se a indicação de que isto não pode estar certo.
O problema central era encontrar propriedades gerais de
sistemas de regras que pudessem ser atribuídas a própria faculdade
de linguagem, na esperança de que o resíduo viesse a se mostrar mais
simples e uniforme.
Há cerca de 15 anos, esses esforços se cristalizaram numa
abordagem à linguagem que foi um afastamento muito mais radical em
relação à tradição do que havia sido a gramática gerativa da
primeira fase. Essa abordagem, que veio a ser chamada de
Princípios e Parâmetros, rejeitou por completo o conceito de
regra e de construção gramatical: não há regras para a formação de
orações relativas em hindi, sintagmas verbais em banto, passivas em
japonês, e assim por diante. As construções gramaticais familiares
são tomadas como artefatos taxionômicos apenas, talvez úteis para a
descrição informal, porém destituídas de valor teórico. Elas têm um
status de algum modo semelhante ao de mamífero terrestre ou
bichinho de estimação. E as regras são decompostas em
princípios gerais da faculdade de linguagem, que interagem tendo
como resultado as propriedades das expressões.
Podemos comparar o estado inicial da faculdade de linguagem
com uma fiação fixa conectada a uma caixa de interruptores; a fiação
são os princípios da linguagem, e os interruptores são as opções a
serem determinadas pela experiência. Quando os interruptores estão
posicionados de um modo, temos o banto; quando estão posicionados de
outro modo, temos o japonês. Cada uma das línguas humanas possíveis
é identificada como uma colocação particular das tomadas – uma
fixação de parâmetros, em terminologia técnica. Se o programa de
pesquisa der certo, deveríamos poder literalmente deduzir o banto de
uma escolha dos posicionamentos, o japonês de outra e assim por
diante em todas as línguas que os seres humanos podem adquirir. As
condições empíricas em que se dá a aquisição de língua requerem que
os interruptores sejam posicionados com base na informação muito
limitada que está disponível para a criança. Notem que pequenas
mudanças em posicionamento de interruptores podem conduzir a grande
variedade aparente em termos de output, pela proliferação dos
efeitos pelo sistema. Estas são as propriedades gerais da linguagem
que qualquer teoria genuína precisa captar de algum modo.
Evidentemente, este é um programa, e não ainda um produto
pronto. As conclusões a que alcançamos não sobreviverão em sua forma
atual, provavelmente. É desnecessário dizer que não se pode garantir
que toda a abordagem esteja no caminho certo. Como programa de
pesquisa, porém, tem sido muito bem sucedido, conduzindo a uma
verdadeira explosão de pesquisa empírica em línguas de um amplo
leque tipológico, a novas perguntas que nunca poderiam ter sido
sequer colocadas antes, e a muitas respostas intrigantes. Questões
de aquisição, processamento, patologia, e outras também tomaram
novas formas, que se provaram também muito produtivas. Além disso
tudo, seja o seu destino qual for, o programa sugere como a teoria
da linguagem poderia satisfazer as condições conflitantes de
adequação descritiva e explicativa. Ele dá pelo menos um esquema de
uma teoria da linguagem genuína, realmente pela primeira vez.
Neste programa de pesquisa, a tarefa principal é descobrir
e esclarecer os princípios e parâmetros e a forma de sua interação,
e estender o arcabouço para incluir outros aspectos da língua e seu
uso. Enquanto ainda há uma grande área obscura, houve progresso
bastante para ao menos considerar, e talvez desenvolver, algumas
questões novas e de maior alcance sobre o design da linguagem.
Em particular, podemos indagar em que medida o design é bom.
Em que medida a linguagem se aproxima do que um superengenheiro
construiria, dadas as condições que a faculdade de linguagem precisa
satisfazer?
As perguntas necessitam ser aguçadas, e há meios para
seguir adiante. A faculdade da linguagem se encaixa dentro da
arquitetura maior da mente/cérebro. Ela interage com outros
sistemas, que impõem condições que a linguagem deve satisfazer se
for para ser de todo usável. Estas poderiam ser pensadas como
condições de legibilidade, no sentido que outros sistemas
precisam ser capazes de ler as expressões da língua e delas
fazer uso para o pensamento e a ação. Os sistemas sensório-motores,
por exemplo, precisam ser capazes de ler as instruções que têm a ver
com som, as representações fonéticas geradas pela língua. O
aparelho articulatório e o perceptual têm um design
específico que lhes permite interpretar certas propriedades
fonéticas, e não outras. Estes sistemas, portanto, impõem condições
de legibilidade aos procedimentos gerativos da faculdade linguística,
que precisam oferecer expressões com forma fonética apropriada. O
mesmo se dá com os sistemas conceptuais e outros sistemas que fazem
uso dos recursos da faculdade linguística: eles têm suas
propriedades intrínsecas, que exigem que as expressões geradas pela
língua tenham representações semânticas de certo tipo, e não
de outro tipo. Consequentemente, podemos perguntar até que ponto a
linguagem é uma boa solução para as condições de legibilidade
impostas pelos sistemas externos com os quais ela interage. Até bem
recentemente, esta questão não poderia ser colocada de forma séria,
e nem mesmo formulada de forma sensata. Agora isto parece ser
possível, e há até mesmo indicações de que a faculdade linguística
possa ser próxima do perfeito neste sentido, uma conclusão,
que se for verdadeira é surpreendente.
Aquilo que veio a ser chamado de programa minimalista
é um esforço para explorar essas questões. É cedo demais para
oferecer um juízo seguro sobre o projeto. Segundo meu juízo pessoal,
as perguntas podem atualmente ser agendadas de maneira proveitosa, e
os primeiros resultados são promissores. Eu gostaria de dizer
algumas palavras sobre as ideias e as expectativas do programa, e
voltar em seguida para alguns problemas que continuam na distância
do horizonte.
O programa minimalista requer que reanalisemos de forma
crítica o que convencionalmente se assume. A mais venerável dentre
estas assunções é que a língua possui som e significado. Em termos
correntes, isto se traduz de modo natural na tese de que a faculdade
de linguagem coloca em função outros sistemas da mente/cérebro em
dois níveis de interface, um relacionado ao som, o outro ao
sentido. Uma expressão qualquer gerada pela língua contém uma
representação fonética que pode ser lida pelos sistemas sensório-motores,
e uma representação semântica que é legível para sistemas
conceituais e outros sistemas de pensamento e ação.
Se isto estiver correto, cabe-nos perguntar em seguida onde
exatamente a interface se localiza. Do lado do som, é preciso
determinar em que medida, se for este o caso, os sistemas sensório-motores
têm especialização para linguagem, sendo neste caso internos à
faculdade de linguagem; uma boa dose de discordância cerca o assunto.
Do lado do sentido, as perguntas se dirigem à relação entre a
faculdade de linguagem e outros sistemas cognitivos – a relação
entre a linguagem e o pensamento. Do lado do som, as questões têm
sido estudadas de modo intensivo com tecnologia sofisticada por meio
século, mas os problemas são árduos, e a compreensão continua sendo
limitada. Do lado do sentido, as perguntas são muito mais obscuras.
Sabe-se muito menos a respeito dos sistemas externos à linguagem; da
evidência que se tem sobre eles, grande parte é vinculada à
linguagem de maneira tão íntima que fica reconhecidamente difícil
determinar quando ela tem a ver com linguagem e quando com outros
sistemas (na medida em que a distinção existe) . E a investigação
direta de tipo semelhante à que se pode fazer com os sistemas
sensório-motores ainda engatinha. Ainda assim, existe uma imensa
quantidade de dados sobre como se empregam e se compreendem
expressões em determinadas circunstâncias, o suficiente para
permitir que a semântica das línguas naturais seja uma das áreas de
maior vivacidade no estudo da linguagem, e o suficiente para que
possamos fazer pelo menos algumas conjeturas plausíveis sobre a
natureza do nível de interface e sobre as condições de legibilidade
que ele precisa satisfazer.
Assumindo tentativamente alguma coisa sobre a interface,
podemos prosseguir para perguntas subsequentes. Perguntamos que
proporção daquilo que estamos atribuindo à faculdade de linguagem é
motivada realmente por evidência empírica, e que proporção é uma
espécie de tecnologia, adotada com o intuito de apresentar os dados
de maneira conveniente, porém encobrindo falhas de compreensão. Com
certa frequência, relatos oferecidos em trabalhos técnicos
demonstram-se ao exame como sendo da mesma ordem de complexidade que
aquilo que se está querendo explicar, e envolvem assunções que não
têm, independentemente, muito boa fundamentação. Isso não constitui
por si só um problema, contanto que não fiquemos desorientados
pensando que descrições úteis e informativas, que podem servir de
degrau para o prosseguimento da investigação, sejam mais do que
exatamente isto.
Questões como estas são sempre apropriadas em princípio,
mas, frequentemente na atividade prática, é inútil colocá-las; podem
ser prematuras, por ser o entendimento simplesmente demasiado
limitado. Mesmo nas ciências exatas, e de fato até na matemática,
questões desta natureza foram postas muitas vezes de lado. Mas as
questões são reais, apesar de tudo, e se tivéssemos em mãos um
conceito mais plausível do caráter geral da linguagem, poderia
talvez valer a pena explorá-las.
Voltemo-nos para a questão da optimalidade do design
da língua: que medida de excelência tem a linguagem como solução
para as condições gerais impostas pela arquitetura da mente/cérebro?
Esta também poderia ser uma pergunta prematura, mas ao contrário do
problema de distinguir entre assunções feitas com base em princípios
e tecnologia descritiva, esta poderia ser uma pergunta sem qualquer
resposta. Não há razão forte para acreditarmos que um sistema
biológico devesse possuir um design excelente no sentido
estrito da expressão. Na medida em que essa excelência existe,
causa-nos surpresa essa conclusão, que é portanto uma conclusão
interessante, talvez mais um aspecto curioso da faculdade de
linguagem, que a coloca muito à parte no universo biológico.
Apesar da aparente implausibilidade inicial, vamos assumir
tentativamente que ambas estas perguntas sejam apropriadas, na
prática também
A primeira pergunta é se existem outros níveis além dos
níveis das interfaces: há níveis no interior da língua e,
especificamente, os níveis de estrutura profunda e estrutura de
superfície, conforme postulados em trabalho dos últimos anos? O
programa minimalista tenta mostrar que todos os fatos que vieram
sendo tratados em termos destes níveis foram descritos mal, e podem
ser igualmente bem ou melhor compreendidos em termos de condições de
legibilidade na interface: para os leitores que conhecem a
literatura técnica, o que está sendo posto em questão é o princípio
de projeção, a teoria da ligação, a teoria do caso, a condição de
formação de cadeia, e assim por diante.
Tentamos também mostrar que as únicas operações
computacionais são as que não se podem evitar se forem acatadas as
assunções mais fracas a respeito das propriedades das interfaces.
Uma assunção da qual ninguém pode escapar é a de que existem
unidades do tipo palavra: os sistemas exteriores precisam ser
capazes de interpretar elementos como "Pedro" e "alto". Outra
assunção é que estes elementos ficam organizados em expressões
maiores, como em "Pedro é alto". Ainda outra é a de que estes
elementos possuem propriedades de som e de significado: a palavra
"Pedro" começa com oclusão labial e é empregada para fazer
referência a pessoas. A língua envolve, portanto, três espécies de
elementos: as propriedades de som e significado, denominadas
traços; os elementos que são montados a partir dessas
propriedades, denominados unidades lexicais, e as expressões
complexas construídas a partir dessas unidades atômicas.
Disto se segue que o sistema computacional que gera expressões
possui duas operações básicas: uma ajunta traços montando itens
lexicais, e a segunda, começando com os itens lexicais, compõe
objetos sintáticos maiores a partir dos já construídos.
Podemos pensar no produto que resulta da primeira operação
de montagem como sendo essencialmente uma lista de elementos
lexicais. Em termos tradicionais, esta lista, chamada léxico,
é a lista das exceções, associações arbitrárias de som e
sentido e escolhas particulares entre as propriedades flexionais
postas à disposição pela faculdade linguística, que determinam como
indicamos que nomes e verbos recebem plural ou singular, determinam
que caso nominativo ou acusativo são marcas que recaem sobre nomes,
e assim por diante. Estes traços flexionais exercerão um papel
central na computação.
Num design com a propriedade da otimidade, não
haveria introdução de novos traços no curso da computação. Não
deveria haver nem índices, nem unidades frasais, nem níveis de barra
(portanto, nem regras de estrutura de frase, nem teoria X-barra).
Também tentamos mostrar que se pode prescindir de invocar relações
estruturais além daquelas exigidas por condições de legibilidade ou
induzidas de alguma maneira natural pela própria computação. Na
primeira categoria entram propriedades como a adjacência no nível
fonético, e estrutura argumental e relações quantificador-variável
no nível semântico. Na segunda categoria, temos relações muito
locais entre traços, e relações elementares entre dois objetos
sintáticos associados no curso da computação: a relação que vige
entre um objeto sintático e partes de um outro é a relação de
c-comando, conforme apontado por Samuel Epstein, uma noção cujo
papel central se irradia por todo o design da língua e que
havia sido considerada grandemente não-natural, embora dentro desta
perspectiva encontre seu lugar de maneira natural. Porém, excluímos
a regência, relações de ligação no interior da derivação de
expressões, e uma variedade de outras relações e interações.
Como sabe quem está a par de trabalho recente, há vasta
evidência empírica para sustentar a conclusão oposta em toda a linha.
E pior ainda, uma assunção central do trabalho feito dentro do
quadro de princípios-e-parâmetros, com seus sucessos dignos de nota,
é que tudo isso que acabo de expor é falso – que a língua é
altamente imperfeita nas relações acima, como bem seria de se
esperar. Assim, não é pequena a tarefa de mostrar que tal aparato
pode ser eliminado por ser uma tecnologia descritiva indesejável; ou
mais ainda, que o poder de descrição e explicação se ampliam se for
eliminado este excesso de peso. Não obstante, penso que o trabalho
destes últimos anos sugere que tais conclusões, que pareciam fora de
cogitação há poucos anos, são pelo menos plausíveis, e com boas
possibilidades de estarem corretas.
As línguas diferem umas das outras, pura e simplesmente, e
gostaríamos de saber de que maneiras diferem. Uma é a escolha dos
sons, que variam no interior de um determinado leque. Outra é a
associação de som e sentido, essencialmente arbitrária. Estas
possibilidades de diferença entre línguas são fáceis de ver, e não
precisamos nos deter nelas. Mais interessante é o fato de que as
línguas diferem nos sistemas flexionais: sistemas de caso, por
exemplo. Verificamos que estes são muito ricos em latim, ainda mais
ricos em sânscrito ou finlandês, mas mínimos em inglês, e totalmente
invisíveis
As condições de legibilidade repartem os traços que se
associam na montagem de itens lexicais em três grupos:
(1) traços semânticos, interpretados na interface semântica
(2) traços fonéticos, interpretados na interface fonética
(3) traços que não recebem interpretação em nenhuma das duas
interfaces
Independentemente, os traços se subdividem em traços
formais que são usados pelas operações sintáticas e outros que
essas operações não usam. Um princípio natural que restringiria
fortemente a variação das línguas é que apenas as propriedades
flexionais sejam traços formais. Isto parece correto, e é um assunto
importante que deverei deixar de lado.
Em uma língua de design perfeito, cada traço deveria
ser semântico ou fonético, e não meramente um mecanismo destinado a
criar uma posição ou facilitar a computação. Se é assim, então
traços formais não interpretáveis não existem. Esta exigência é, ao
que parece, excessivamente forte. Prototípicos traços formais, como
o caso estrutural – o nominativo e o acusativo do latim, por exemplo
– não têm nenhuma interpretação na interface semântica e não são
necessariamente expressos no nível fonético. Portanto, podemos
propor uma exigência mais fraca que se aproxima do design
ótimo: cada traço ou é interpretado na interface semântica ou é
acessível ao componente da gramática que dá forma fonética a um
objeto sintático, o componente fonológico, que pode fazer uso (e
algumas vezes faz) dos traços em questão para determinar a
representação fonética. Vamos assumir que é esta condição mais fraca
que atua.
Na computação sintática, parece existir uma segunda
imperfeição, mais dramática, no design da língua, ou ao menos
uma aparente imperfeição: a propriedade de deslocamento, que
é um aspecto pervasivo da língua: unidades sintáticas são
interpretadas como se encontrassem numa posição diferente daquela em
que de fato se encontram na expressão, sendo esta uma posição em que
elementos semelhantes às vezes são encontrados, e interpretados em
termos de relações locais naturais. Tomem a sentença Clinton
parece ter sido eleito. Nosso entendimento da relação entre "eleger"
e "Clinton" é idêntico ao que temos quando estes dois termos estão
localmente relacionados como na sentença Parece que elegeram
Clinton: na terminologia tradicional da gramática, "Clinton" é o
objeto direto de "elegeram" , embora "deslocado" para a posição de
sujeito de "parece": o sujeito e o verbo concordam em traços
flexionais neste caso, mas não têm relação semântica alguma; a
relação semântica do sujeito da frase é a que se dá com o longínquo
verbo "eleger".
Temos agora duas imperfeições: traços formais não
interpretáveis, e a propriedade de deslocamento. Se assumimos que o
design é ótimo, deveríamos esperar que as duas imperfeições
tivessem alguma relação, e parece mesmo que isto é verdade: traços
formais não interpretáveis são os mecanismos que implementam a
propriedade de deslocamento.
A propriedade de deslocamento nunca é utilizada nos
sistemas simbólicos que são intencionalmente desenhados com vistas a
propósitos especiais, denominados em uso metafórico linguagens
ou linguagens formais: a linguagem da aritmética, ou
linguagem para computador ou as linguagens da ciência.
Estes sistemas também não possuem sistemas flexionais, e portanto
não possuem traços formais não interpretados. O deslocamento e a
flexão são propriedades especiais das línguas humanas, entre as
muitas que são postas de lado no design de sistemas
simbólicos para outras finalidades, quando se pode prescindir das
condições de legibilidade impostas à linguagem humana natural pela
arquitetura da mente/cérebro.
A propriedade de deslocamento da linguagem humana pode ser
expressa na descrição em termos de transformações gramaticais ou
mediante qualquer outro mecanismo, mas de alguma forma essa
propriedade é sempre expressa. Por que razão teriam as línguas a
propriedade do deslocamento é uma pergunta interessante, que tem
sido discutida por quase 40 anos, sem que se encontrasse uma boa
resposta.
Suspeito que uma parte da sua razão de ser tem algo a ver
com fenômenos que têm sido descritos em termos de interpretação de
estrutura de superfície, muitos deles familiares desde a gramática
tradicional: tópico-comentário, especificidade, informação nova e
informação velha, o sentido agentivo que existe mesmo em posição
resultante de deslocamento, e assim por diante. Se isto está certo,
então, a propriedade de deslocamento é realmente provocada por
condições de legibilidade: sua motivação está em exigências
interpretativas que são externamente impostas por nossos sistemas de
pensamento, que possuem estas propriedades especiais, ao que indica
o estudo do uso da língua. Há em curso, atualmente, interessantes
investigações destas questões, porém, neste momento não posso
delongar-me nisso.
Desde os trabalhos iniciais, assumiu-se na gramática
gerativa que a computação é composta de operações de duas espécies:
regras de estrutura de frase que formam objetos sintáticos maiores a
partir de itens do léxico, e regras transformacionais que expressam
a propriedade de deslocamento. Embora os primórdios do tratamento de
ambas as operações se possam encontrar desde os estudos gramaticais
tradicionais, em pouco tempo de trabalho pudemos verificar que elas
são substancialmente diferentes do que anteriormente se supunha, por
apresentarem graus inesperados de variedade e complexidade. O
programa de pesquisa tentou mostrar que a complexidade e variedade
são apenas aparentes, e que os dois tipos de regras podem ser
reduzidos a uma forma mais simples. Uma solução perfeita para
o problema da variedade das regras de estrutura de frase seria
eliminar totalmente essas regras em favor da operação irredutível
que toma dois objetos já formados e junta um ao outro formando um
objeto maior dotado exatamente das propriedades do alvo da junção: a
operação que podemos chamar de junção (merge ). Esse objetivo
pode muito bem ser atingível, é o que trabalho recente indica.
O procedimento computacional ótimo, então, consiste da
operação juntar e operações destinadas a construir a propriedade do
deslocamento: operações transformacionais ou alguma contraparte
delas. O segundo dos dois empreendimentos paralelos tentava reduzir
o componente transformacional à forma mais simples, embora, à
diferença das regras de estrutura de frase, este componente não
parece poder ser eliminado. O resultado final foi a tese de que para
um conjunto nuclear de fenômenos existe uma única operação Mover –
basicamente, mover qualquer coisa para qualquer posição –, que não
tem propriedades específicas em uma dada língua ou uma construção
particular. Como a operação se aplica é uma decorrência de
princípios gerais que interagem com escolhas paramétricas
específicas – posicionamentos de interruptores – que determinam uma
língua particular. A operação Juntar toma dois objetos distintos X e
Y e junta Y a X. A operação Mover toma um único objeto X e um objeto
Y que é uma parte de X, e junta Y a X. O objeto que é formado desta
maneira inclui o que se chama de CADEIA, que consiste de duas
ocorrências de Y; a ocorrência na posição inicial é chamada de
VESTÍGIO ( ing. trace ).
O problema seguinte é mostrar que de fato os traços formais
não interpretáveis são o mecanismo que implementa a propriedade do
deslocamento, de modo que as duas imperfeições básicas do sistema
computacional ficam reduzidas a uma. E se vier a se mostrar
verdadeiro que a propriedade do deslocamento tem como motivação
condições de legibilidade impostas por sistemas externos de
pensamento, conforme acabo de sugerir, então as imperfeições acabam
por ficar completamente eliminadas e o design da língua se
mostra, ao final das contas, ótimo: traços formais não interpretados
são necessários como um mecanismo que satisfaz a condição de
legibilidade imposta pela arquitetura geral da mente/cérebro.
Esta unificação pode ser feita de maneira bastante simples,
mas para explicá-la coerentemente deveríamos transpor os limites
deste espaço. A ideia intuitiva básica é a de que traços formais não
interpretáveis precisam ser apagados para satisfazer as condições da
interface, e o apagamento requer uma relação local entre o traço
indesejado e um outro traço combinado que possa apagar o primeiro.
A situação típica é a de que estes dois traços estão
afastados um do outro, devido à maneira pela qual a interpretação
semântica procede. Por exemplo, na sentença "Clinton parece ter sido
eleito", a interpretação semântica requer que "eleito" e "Clinton"
estejam relacionados de modo local na frase "eleito Clinton" para
que a construção possa ser interpretada de maneira apropriada, como
se a sentença fosse realmente "parece ter sido eleito Clinton". O
verbo principal da sentença, "parece", possui traços flexionais
não-interpretáveis: está na forma /singular/, /terceira pessoa/,
/masculino/, propriedades que nada de independente acrescentam ao
sentido da sentença, uma vez que já se encontram expressas no
sintagma nominal com o qual há acordo, sendo não-elimináveis neste.
Estes traços ofensores de "parece" precisam, pois, ser apagados numa
relação local, operação que é uma versão explícita da categoria
descritiva tradicional de "concordância". Para conseguir este
resultado, os traços coincidentes do sintagma concordante "Clinton"
são atraídos pelos traços ofensores do verbo principal "parece", que
são então apagados por efeito do pareamento no local onde ele se dá.
Mas agora o sintagma, "Clinton", está deslocado.
Observem que apenas os TRAÇOS de "Clinton" são atraídos; o
sintagma inteiro se move por razões relacionadas ao sistema sensório-motor,
por ser este incapaz de pronunciar ou escutar traços
isolados da frase à qual pertencem. Porém, se por alguma razão o
sistema sensório-motor fica inativo, sobem apenas os traços, e lado
a lado de sentenças como um candidato impopular parece ter
sido eleito, com deslocamento explícito, temos sentenças da
forma parece ter sido eleito um candidato impopular: aqui a
frase longínqua "um candidato impopular" concorda com o verbo
"parece", o que significa que seus traços foram atraídos para uma
relação local com "parece", mas deixaram atrás o restante da frase.
A razão é que o sistema sensório-motor foi desativado neste caso, ao
qual denominamos de movimento encoberto, um fenômeno com
muitas propriedades interessantes. Em muitas línguas, como o
espanhol, existem tais sentenças. O inglês as possui também, embora,
por outras razões, seja necessário introduzir o elemento
semanticamente vazio "there", dando lugar à sentença there seems
to have been elected an unpopular candidate; e também, por
razões muito interessantes, é necessário efetuar uma inversão de
ordem, de modo que o resultado é there seems to have been an
unpopular candidate elected. Essas propriedades decorrem de
escolhas específicas de parâmetros, que têm efeitos nas línguas de
um modo geral e que interagem dando lugar a uma rede bem complexa de
fenômenos, distintos apenas na superfície. No caso que estamos
considerando, tudo se reduz ao simples fato de que traços formais
não interpretáveis precisam ser apagados numa relação local com um
traço coincidente, produzindo a propriedade de deslocamento exigida
para poder haver interpretação semântica na interface.
Combinando estas variadas ideias, algumas ainda um tanto
especulativas, podemos descortinar tanto o que motiva quanto o que
detona a propriedade do deslocamento. Observem que é preciso
distinguir estas duas coisas. Um embriologista que estude o
desenvolvimento do olho poderá anotar o fato de que para que um
organismo sobreviva pode ser de muita ajuda que as lentes contenham
algo que as proteja de danos e algo que faça a refração da luz; e
continuando a observar, descobriria que as proteínas do cristalino
têm ambas as propriedades e parecem ser também componentes da lente
do olho encontrados sempre, marcando presença por caminhos de
evolução independentes. A primeira propriedade tem a ver com
motivação ou design funcional, a segunda com o
fator detonante que provoca o design funcional apropriado. Há
uma relação indireta e importante entre estas duas coisas, mas seria
um engano confundi-las. Assim, um biólogo que aceite tudo isto não
proporia a propriedade do design funcional como o próprio
mecanismo do desenvolvimento embriológico do olho.
Por raciocínio semelhante, não gostaríamos de confundir
motivações funcionais para propriedades da linguagem humana com os
mecanismos específicos que as implementam. Semelhantemente, não
queremos fazer confusão entre o fato de que a propriedade de
deslocamento é exigida por sistemas externos em níveis de interface
e os mecanismos mesmos da operação Atrair e seu reflexo.
Há uma boa porção de coisas apenas alinhavadas nesta breve
descrição. Preenchendo os claros se chega a um quadro bastante
interessante, com muitas ramificações em línguas tipologicamente
distintas. Contudo, não é possível prosseguir porque iríamos além do
escopo destas observações.
Eu gostaria de finalizar fazendo pelo menos uma breve
referência a outras questões que dizem respeito ao modo pelo qual o
estudo internalista da linguagem se liga ao mundo exterior. Para
facilitar, vamos nos ater a palavras simples. Suponhamos que "livro"
é uma palavra que existe no léxico de Pedro. A palavra é um complexo
de propriedades, fonéticas e semânticas. Os sistemas sensório-motores
usam as propriedades fonéticas para articulação e percepção,
relacionando-as a eventos externos: movimentos de moléculas, por
exemplo. Outros sistemas da mente usam as propriedades semânticas
das palavras, quando Pedro fala sobre o mundo e quando interpreta o
que outros falam.
Não há nenhuma controvérsia profunda sobre como proceder do
lado dos sons, porém do lado da significação há muitos pontos de
discórdia, ou pelo menos assim parece; no mínimo alguns podem se
desfazer se olhados mais de perto. Noto que estudos empiricamente
orientados abordam problemas de significação com a mesma postura com
que abordam o estudo dos sons, como na fonética e fonologia.
Procuram descobrir as propriedades semânticas de "livro": que é
nominal, não verbal, empregado para referir-se a um artefato e não a
uma substância, como água, ou a uma abstração, como saúde, e assim
por diante. Alguém poderia indagar se estas propriedades são parte
do significado da palavra "livro" ou do conceito associado à palavra;
até onde chego a compreender, não há boa maneira de fazer distinção
entre as duas propostas, mas é possível que algum dia se possa
desencavar um dilema empírico. De uma forma ou de outra, alguns
traços do elemento lexical "livro" que são internos a ele determinam
modos de interpretação do tipo mencionado acima.
Investigando o uso da língua, descobrimos que a
interpretação das palavras é feita em termos de fatores como
constituição material, formato, uso característico e pretendido,
papel institucional, e assim por diante. As coisas são identificadas
e alocadas a categorias em termos de tal tipo de propriedade, que
estou tomando como sendo os traços semânticos, paralelamente aos
traços fonéticos que determinam o seu som. O uso da língua pode
atentar para esses traços semânticos de várias maneiras. Suponhamos
que a biblioteca possui duas cópias de Guerra e Paz de
Tolstoy, e que Pedro toma de empréstimo uma, e João a outra. Pedro e
João pegaram o mesmo livro, ou livros diferentes? Se atentamos para
o fator material do elemento lexical, diremos que eles pegaram
livros diferentes; se atentamos para o seu componente abstrato, eles
pegaram o mesmo livro. Podemos focalizar simultaneamente o fator
material e o fator abstrato, como quando dizemos que o livro que
ele está projetando vai pesar no mínimo dois quilos se ele conseguir
escrevê-lo ou seu livro está em todas as livrarias do país.
De maneira semelhante, podemos pintar a porta de branco e passar por
ela, empregando o pronome "ela" referindo-nos ambiguamente tanto à
figura como ao fundo. Podemos relatar que o banco sofreu um atentado
a bomba depois de elevar a taxa de juros, ou que ele elevou a taxa
de juros para evitar sofrer um atentado a bomba. Aqui, o pronome
"ele" e a categoria vazia que é o sujeito de "sofrer atentado"
simultaneamente adotam tanto os fatores materiais quanto
institucionais.
A mesma situação se verifica se minha casa é destruída e eu
a reconstruo, possivelmente em outro lugar; não é a mesma casa,
mesmo se eu fizer uso dos mesmos materiais, embora eu diga que a
re-construí. Os termos referenciais "re" e "a" sobrepassam a
fronteira. Com cidades tem-se outra situação ainda. Londres poderia
ser destruída por fogo e, em outro lugar e com materiais
completamente diferentes, ela poderia ser reconstruída, sendo
ainda Londres. Cartago poderia ser reconstruída hoje, e ser ainda
Cartago. Suponha que eu lhe diga que antigamente eu acreditava que
Istambul e Constantinopla fossem cidades diferentes, mas agora sei
que são a mesma cidade, acrescentando que Istambul deverá ser
removida para uma outra localização, para que Constantinopla não
tenha um caráter islâmico; ela deverá ser levada para outro
lugar e lá deverá ser re-construída, embora de alguma maneira
mantendo-se como a mesma cidade. Este uso é perfeitamente
inteligível; já me deparei com exemplos ainda mais estranhos na fala
e na escrita, e estes exemplos mal arranham a superfície do que
encontramos quando começamos a olhar de perto os significados das
palavras.
Os fatos envolvidos nestas questões são no mais das vezes
claros, mas nada triviais. Assim, elementos referencialmente
dependentes, mesmo os mais estritamente restritos, observam algumas
distinções mas ignoram outras, de maneiras que variam curiosamente
para diferentes tipos de palavras. Tais propriedades podem ser
investigadas de muitas maneiras: aquisição de língua, generalidade
entre línguas, formas inventadas etc. O que descobrimos é
surpreendentemente intricado; e, não surpreendentemente, é sabido
antes de se terem evidências, portanto compartilhado entre as
línguas. Não há razão a priori para se ter expectativa de
tais propriedades nas línguas do mundo; em Marte a língua poderia
ser diferente. Os sistemas simbólicos das ciências e da matemática
são decerto diferentes. Ninguém sabe em que medida as propriedades
específicas da língua humana são uma consequência de leis
bioquímicas gerais que se aplicam a objetos com traços gerais do
cérebro, outro problema importante num horizonte ainda distante. A
filosofia dos séculos 17 e 18 desenvolveu de maneira interessante
uma abordagem à interpretação semântica semelhante a esta,
frequentemente adotando o princípio de Hume de que a identidade que
atribuímos às coisas é somente fictícia, estabelecida pelo
entendimento humano. A conclusão de Hume é muito plausível. O livro
sobre a minha mesa não tem estas estranhas propriedades em virtude
de sua constituição interna; antes, em virtude da maneira de pensar
das pessoas, e dos sentidos dos termos em que esses pensamentos são
expressos. As propriedades semânticas das palavras são usadas para
pensar e falar sobre o mundo em termos de perspectivas postas à
nossa disposição pelos recursos da mente, o que de certo modo se
assemelha à maneira pela qual parece proceder a interpretação
fonética.
A filosofia da linguagem contemporânea toma um caminho
diferente. A pergunta que faz é a que coisa uma palavra se refere,
dando variadas respostas. Mas a pergunta não tem um sentido claro. O
exemplo de "livro" é típico. Faz pouco sentido perguntar a que
coisa a expressão Guerra e Paz de Tolstoy se refere,
quando Pedro e João retiram da biblioteca duas cópias idênticas. A
resposta depende de como os traços semânticos são usados quando
pensamos e falamos, de um modo ou outro. Estas observações se
estendem aos elementos referenciais e referencialmente dependentes
mais simples (pronomes, categorias vazias, "mesmo", etc.). E também
a nomes próprios, que têm propriedades semântico-conceituais muito
ricas. As coisas recebem nomes de pessoa, de rio, de cidade, com a
complexidade de entendimento que vai junto com estas categorias. A
linguagem não possui nomes próprios do ponto de vista lógico,
despidos dessas propriedades, conforme apontou há muitos anos atrás
o filósofo Peter Strawson, de Oxford. Em geral, uma palavra, mesmo
do tipo mais simples, não pinça uma entidade no mundo externo, ou de
nosso espaço de crenças – o que, evidentemente, não implica
em negar que existam livros ou bancos, ou que estejamos de fato
falando de alguma coisa real se, discutindo o destino da Terra,
dizemos que ele é duvidoso. Mas deveríamos seguir o bom
conselho do filósofo do século XVIII Thomas Reid e seus sucessores
modernos, Ludwig Wittgenstein e outros, e não tirar do uso comum
conclusões injustificadas.
Podemos, se isto nos apraz, dizer que a palavra "livro" se
refere a livros, "céu" ao céu, "saúde" à saúde, e assim por diante.
Acreditar em convenções como essas expressa, basicamente,
uma falta de interesse em como as palavras são usadas para falar
sobre coisas, e sobre suas semânticas. Essas supostas convenções
levantam outros problemas e envolvem o que me parecem suposições
duvidosas, outro tópico importante que não posso ter a esperança de
poder abordar aqui.
Mencionei antes que a gramática gerativa moderna tentou
fazer face a preocupações que davam ânimo à tradição, em particular,
à ideia cartesiana de que a verdadeira distinção entre o
homem e outras criaturas ou máquinas é a habilidade de agir da
maneira que consideravam como muito claramente ilustrada no uso
normal da linguagem: sem limites finitos, influenciada, mas não
determinada pelo estado interno; apropriada a situações, mas não
causada por elas; coerente e evocadora de pensamentos que o ouvinte
poderia ter expresso, e assim por diante. O objetivo do trabalho que
estive discutindo é o de desvendar alguns dos fatores que entram
nesta prática normal. Mas somente alguns.
A gramática gerativa procura descobrir os mecanismos que
são usados, contribuindo assim para o estudo de como eles são
usados de maneira criativa da vida normal. Como são usados é o
problema que intrigou os cartesianos, e se mantém tão misterioso
para nós quanto era para eles, mesmo se hoje compreendemos bem mais
sobre os mecanismos envolvidos.
Nesse aspecto, o estudo da linguagem é mais uma vez
bastante similar ao de outros órgãos. O estudo dos sistemas visual e
motor pôs a descoberto mecanismos pelos quais o cérebro interpreta
estímulos esparsos como um cubo e o braço que se estende para pegar
um livro sobre a mesa. Porém, note-se que estes ramos da ciência não
levantam a questão de como as pessoas decidem olhar para um livro na
mesa ou pegá-lo, e especulações sobre o uso dos sistemas visual ou
motor, ou outros, importam bem pouco. São essas capacidades,
manifestas mais impressionantemente no uso da língua, que estão no
cerne das preocupações tradicionais: para Descartes, elas são a
coisa mais nobre que podemos ter e são tudo o que a nós
realmente pertence. Meio século antes de Descartes, o
filósofo-médico espanhol Juan Huarte observou que esta capacidade
gerativa do entendimento e ação humana ordinários é estranha a
animais e plantas, embora seja uma forma inferior de
entendimento que está aquém do exercício verdadeiro da imaginação
criativa. Mesmo esta forma inferior está além do nosso alcance
teórico, afora o estudo dos mecanismos que entram na sua composição.
Num bom número de áreas, em que está incluída a linguagem,
muita coisa se aprendeu nos últimos anos a respeito destes
mecanismos. Os problemas que agora somos capazes de encarar são
difíceis e desafiadores, porém muitos mistérios ainda estão além do
alcance da forma de inquirição humana que chamamos de ciência,
o que é uma conclusão que não deveríamos achar surpreendente se
consideramos os seres humanos como parte do mundo orgânico, e talvez
uma conclusão que não nos deveria tampouco parecer desanimadora.
[1]
Conferência proferida na UFRJ (Universidade
Federal do Rio de Janeiro) em 18 de
novembro de 1996. Promoção do
Departamento de Linguística e da
Pós-Graduação em Linguística
da Faculdade de Letras da UFRJ e na
UFPa (Universidade Federal do Pará)
em 29 de novembro de 1996. Promoção
do Museu Goeldi/CNPq e BASA
(transmitido ao vivo pela TV
Cultura) (Tradução: Miriam Lemle).
Nossos agradecimentos ao CNPq pelo
apoio financeiro, à COPPE/UFRJ por
ter se juntado ao Departamento de
Linguística na organização das duas
conferências que aconteceram na
nossa UFRJ, a vários colegas deste
Departamento que investiram energias
imensas (em modo muito especial,
Carlota Rosa bem como Edione
Trindade Azevedo e Lucinda Britto),
ao Diretor da Faculdade de Letras,
Carlos Tannus, pela colaboração
inestimável. Revisão, segundo o Novo
Acordo Ortográfico, por Antônio
Jackson de Souza Brandão.